terça-feira, 25 de agosto de 2015

SATURNIA - Entrevista

Muitas têm sido as oportunidades de se conhecer o trabalho de Luís Simões ao longo das últimas duas décadas. Muitos projectos, muitos instrumentos, muitas colaborações e o nome Saturnia ecoava pelo subterrâneo musical a partir dos finais de 1996. Transformava-se, adaptava-se e redefinia-se, como um bem essencial e muito querido, de forma a perpetuar o seu core musical enquanto o desenvolvimento tecnológico não lhe disponibilizava outras ferramentas igualmente intuitivas. Pelo caminho mais cerceado e mais pulsante, por uma estrada de tal maneira íngreme em direcção a uma nova forma de conceber música, a ligação à alemã Elektrohasch tornou-se umbilical e seria inevitável, a partir da edição de debute do ano passado, que uma das raras aparições de Saturnia ao vivo, em formato banda, estivesse reservada para um cartaz do Reverence Valada onde Daevid Allen, Nik Turner e Stefan Koglek, renomeados colaboradores em disco, se sentiram (ou sentiriam) também confortáveis.
Mesmo que o dia 28 de Agosto amanheça em Valada do Ribatejo com os Saturnia e Miguel Fonseca aka Astroflex, muitos continuarão sem saber onde estavam na altura em que ouviram pela primeira vez os Saturnia. E muitos continuarão à espera que esse momento aconteça, excepto aqueles que leiam as próximas linhas partilhadas com o todo-poderoso Luís Simões.





BandCom (BC): Na sua génese, os Saturnia não eram meramente um projecto musical, correcto? Como é que surgiram?

Luís Simões (LS): Não eram, de facto, os Saturnia surgiram fruto da minha vontade de trabalhar de forma totalmente diferente e de fazer algo totalmente diferente daquilo que tinha feito até então.
A ideia era fazer uma “banda” multimédia que envolvesse música, vídeo, performance e todas as formas de arte que o conceito Saturnia pudesse assimilar. Uma ideia muito idealista e ligeiramente megalómana...
Na fase mais inicial dos Saturnia eu estava a reagir contra a minha educação feita no rock e dos seus paradigmas, basicamente a experimentar, procurar e tentar coisas novas numa luta consciente contra o dogma na arte e na minha vida.


BC: Quando é que decidiste focar-te inteiramente na música?

LS: A mudança para um projecto puramente musical acontece quando se torna para mim óbvio, em 1998, que no caminho que estava a seguir os Saturnia iriam ser basicamente umas texturas sonoras com vídeo e uma performance; era muito pouco e muito limitador para o que eu queria atingir artisticamente e então decidi apontar a energia para a minha área, a música.
Deixei de perder tempo com coisas supérfluas. É aí que passa a fazer sentido para mim, como multi-instrumentista, trabalhar sozinho; é algo que essencialmente dura até hoje. Aquilo que faço pode ser apresentado ou percebido como uma banda mas é demasiado detalhado para ser produzido num contexto de trabalho de grupo.


BC: Há alguma cena musical que te fascine particularmente? O 'krautrock' da Alemanha dos 60, o 'prog' italiano da década de 70...

LS: É difícil falar de uma cena especificamente pois sou um melómano amante de discos e Saturnia bebe de muitas fontes: numa camada mais superior, a psicadelia inglesa dos anos 60, todo o prog europeu dos anos 70, as bandas alemãs (nomeadamente as electrónicas) mas também a música concreta e classica-indiana e até algum easy- listening e exotica. Embora hoje seja uma influencia menor, no inicio de Saturnia a musica electrónica da segunda metade dos anos 90 também foi extremamente importante pois mostrou-me uma abordagem composicional diferente e abriu-me os horizontes para novas formas de abordar, trabalhar e estruturar a criação.





BC: Quando José Cid decidiu recentemente tocar o "10 000 Anos Depois" ao vivo, muitas pessoas descobriram uma faceta que não sabiam existir nele e, talvez, mesmo na música portuguesa dos anos 70. Quais são, para ti, as pérolas nacionais esquecidas pelo tempo?

LS: É curioso que fales desse álbum em particular pois lembro-me de ser motivo de risinhos nos anos 90 por admirar desse álbum e muito do trabalho do José Cid; realmente, e felizmente, a vida dá muitas voltas…
Talvez o disco dos Experiencia, “Passo A Passo”, ou o primeiro do Rão Kyao, “Malpertuis”, mereçam ser escutados com mais atenção; para mim, os dois primeiros álbuns de Tantra, “Mistérios e Maravilhas” e “Holocausto” (e o próprio Manuel Cardoso), são absolutamente incontornáveis.


BC: Podes falar um pouco do teu percurso enquanto músicos? Qual foi o teu primeiro instrumento e como é que foste expandindo horizontes?

LS: Comecei por aprender guitarra clássica e na adolescência passei à guitarra eléctrica e baixo. A meio dos anos 90 comecei a gravar em casa, ainda num contexto tecnicamente analógico: primeiro comecei a trabalhar com caixas de ritmos e sintetizador, depois a necessidade de mais instrumentação cresceu e assim comecei a tocar órgão, mellotron, gongo, sitar indiano, theremin, flauta e vários outros instrumentos conforme as peças em que trabalhava. 
Sempre tive facilidade em tocar vários instrumentos e para mim foi um processo natural no qual fui crescendo tecnica, artistica e intelectualmente e que se foi desenrolando paralelamente às gravações e ao próprio trabalho de criação.
Em 1999 a mistura de sonoridades de Saturnia, embora na sua infância, já existia como uma identidade sonora, o que é perceptível no primeiro álbum; curiosamente ela cristalizou muito rapidamente e no segundo disco, “The Glitter Odd”, já temos algo que, embora num contexto de impressionismo lo-fi, é o que ainda hoje encontras em Saturnia embora, actualmente, com a evolução e experiência de mais alguns álbuns e as metamorfoses da própria passagem do tempo.
Numa nota mais biográfica, toquei e toco em três projectos: Shrine (entre 1989-1997), Saturnia (1996- ) e Blasted Mechanism (2003- ); gravei e toquei com artistas como Cool Hipnoise, The Gift, Nigga Poison, Lulu Blind, The Firstborn, Ena Pá 2000, More Republica Masonica ou Plastica.


BC: Este parece ter sido sempre um projecto bastante "caseiro". Como é que se convence os Saturnia a tocar ao vivo?

LS: Sim, Saturnia é música homegrown e a ideia sempre foi não tocar demais ao vivo; basicamente se o interesse dos promotores nos Saturnia for musical e artístico e existirem as condições técnicas, se os planetas estiverem no alinhamento correcto e eu estiver para aí virado (o que não é muito frequente) a coisa pode dar-se.
Saturnia é um artista que ao contrário dos outros não busca o sucesso ou reconhecimento por si mesmo mas sim a satisfação artística e estética. 
Aquilo que na promoção dos Saturnia, ou ausência da mesma para ser mais objectivo, é visto como alienação por alguns e elitismo por outros sempre foi uma forma de preservação da integridade do projecto e da minha saúde mental. O grande contra disto é que é uma constante da carreira de Saturnia aparecerem permanentemente pessoas a dizerem-me coisas do género "como é que vocês têm cinco álbuns e só vos conheci agora?”.





BC: No final deste mês vais marcar presença no Reverence Valada. Por acaso foi ideia do Passos Coelho tocarem com os Astroflex ao nascer do sol?

LS: Pois é, Saturnia vai tocar no Reverence Valada, já não tocávamos em Portugal há algum tempo e eu vou fazer a Sunrise Jam com o Miguel Fonseca - foi um convite do Alexandre Travessas e do Miguel Fonseca.
Conheci o Miguel Fonseca em 1992 quando ele estava nos Thormenthor e eu nos Shrine, tocámos [em] vários concertos juntos e mais tarde gravei sitar, mellotron e gongo em dois discos dos Plastica e toquei ao vivo com eles - gosto de todo o seu, também já extenso, trabalho e estou sempre interessado em fazer coisas com ele.


BC: Para estarem frescos em dois concertos a horas tão tardias vão passar o dia a dormir ou há concertos que considerem absolutamente imperdíveis?

LS: Penso que vamos passar o dia o mais calmamente que conseguirmos mas Amon Düül II, Sleep, The Jon Spencer Blues Explosion e Electric Moon são para ver.


BC: Em 2016 os Saturnia atingem o seu vigésimo aniversário. Como o vais celebrar?

LS: Continuando a fazer aquilo que considero ser válido e útil na minha existência e também para a espécie humana: mais musica.
O novo álbum de Saturnia está a começar a ser misturado e à partida em 2016 vamos ter álbum novo. Além disso também vão aparecer mais vídeos da série Official Bootleg.



Daniel Sampaio




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