quarta-feira, 24 de setembro de 2014

TODOS NÓS TEMOS ANTÓNIO VARIAÇÕES NA VOZ: 30 ANOS DEPOIS



Fins da década de 70 / Inícios da década de 80Do horizonte vazio de Barcelos, alguém se ia insurgindo em terras de capital: António Joaquim Rodrigues Ribeiro. Consta ser cabeleireiro, profissão que nunca foi paixão sua, mas que a necessidade da sobrevivência o obrigou a abraçar. Trabalha no primeiro cabeleireiro unissexo a funcionar em Portugal e a boa fama do cabeleireiro Ayer acaba por fazer com que algumas das individualidades portuguesas mais consagradas da época acabassem por frequentá-lo.

Os clientes e os dois dedos de conversa encarregavam-se da sucessão dos dias, até que aparecia no salão Ayer um cliente diferente. Era Júlio Isidro, que na altura apresentava um programava televisivo na RTP responsável pela divulgação da música que se ia fazendo em terras lusas. António Ribeiro atende-o e os habituais dedos de conversa fazem-no segredar ao ouvido de Isidro: «Sabe, eu também canto. E não canto só enquanto tomo banho ou assim, tenho algumas maquetes. Será que pode ouvi-las?».

António Ribeiro era uma espécie de jogador de futebol de rua, mas que não jogava futebol e, ao invés, ia fazendo algumas demos em casa. De cariz peculiar, as demos eram a representação de um sonho que todos nós, por vezes, já tivemos. António gravava as suas próprias canções sem o acompanhamento de ninguém nem de uma tradicional guitarra, fazendo das suas cordas vocais as cordas de uma guitarra, da sua caixa de ritmos a sua própria bateria. As letras, inteiramente escritas por si, transbordavam autênticas pérolas em que todos se reviam naquela altura – já em tenra fase se iam esculpindo slogans sociais. As maquetes que ia gravando não tinham um propósito bem cimentado, não obstante eram os elementos mais representativos do sonho que o comandava, do desejo que tinha de um dia poder vir a ser músico e a gravar um disco. Júlio Isidro aparecera e repentinamente abrira-se uma janela que fazia com o que sol iluminasse intensamente as paredes físicas do Ayer e com que a força do vento quebrasse as fronteiras de um sonho que passava agora a ter uma pitada de realidade, mesmo que apenas existente na cabeça do ainda não Variações.

«Claro que posso ouvi-las. Quando as posso ter?» retorquiu Isidro. Estava confirmado: o sonho acabava de receber o combustível suficiente para poder andar para a frente. E assim foi. Daquele momento até ao convite para ir cantar uma das suas canções ao vivo pouco passou. O mesmo se aplica para a chegada do passo final para a concretização efectiva de um sonho: a gravação de um disco, que teria edição da mítica Valentim de Carvalho. Conta-se que o processo de gravação do disco foi uma das coisas mais estranhas da vida dos músicos que iriam acompanhar Variações. O seu nome artístico, aliás, tem uma finalidade; nas várias entrevistas que concedeu e em que o abordavam acerca da origem do nome Variações, António sempre se defendeu com o mesmo argumento: «uma variação é uma coisa que é naturalmente ecléctica, é aquilo que pretendo ser».

Efectivamente, António (a)variava-se como ninguém procurando desenfreadamente uma modernização a partir da actividade rupestre da herança e tradição camponesa e folclórica. De Nova York até à profundidade das vivências de um Portugal em plena (re)construção pós-ditadura distavam mentalidades, culturas e visões. Nova York nem chega a ser a cidade que nunca dorme, chega a ser um elo metafórico que constrói um qualquer tipo de divergência entre o exterior e o interior, entre a típica cidade e a ruralidade do costume. Mas a verdade é que foi sempre assim que António Variações definiu aquilo que queria; queria construir uma ponte bem segura e fixa nas suas raízes e que garantisse que por lá corresse sem inércia a modernidade.

António chegou ao estúdio da Valentim de Carvalho com uma atitude resignada; iria finalmente alcançar o seu derradeiro sonho, o sonho de lançar um disco. Chegou aos estúdios com um espírito submisso, mas perfeitamente consciente das ideias que tinha e que queria para a roupagem das suas músicas. Era, como já foi referido, um músico selvagem; não tinha qualquer tipo de formação musical, não sabia tocar nenhum instrumento e não sabia sequer ler pautas. É evidente que a priori isto é mais do que meio caminho andado para o vazio. No entanto, mesmo tendo em conta essas adversidades, manteve-se fiel às suas ideias. As instrumentais das canções do seu primeiro disco, Anjo da Guarda (1983), foram feitas tendo por base aquilo que da sua boca saía. A atitude submissa com que encarou a gravação do seu primeiro LP rapidamente se alterou, vincando-se a vertente teimosa de Variações – que, claramente, não estava ali para fazer o que os outros queriam, não estava ali para ser despachado, mas sim para que com o tempo a banda de apoio que o acompanhava aprendesse a decifrar os zumbidos que se iam libertando a partir das suas cordas vocais. A partir daí iniciava-se o processo de tradução que era feito pelas guitarras, pelas baterias e por uma produção que nunca escondeu que gosta de se abarcar à tradição popular.

António Variações jamais poderia ser considerado o melhor músico que tinha entrado pela Valentim de Carvalho. O facto de ser praticamente um analfabeto no que toca à produção da própria música, fazia com que os responsáveis pela mítica editora não acreditassem, naquela altura, num possível sucesso – e também foi por aí que quando Variações entrou nos estúdios para a gravação de Anjo da Guarda se sentia resignado. A vida não é uma esfera e nem tudo gira à volta do mesmo centro. E o centro da vida de Variações era o nome mais marcante do Portugal de então: Amália Rodrigues era descrita por António como um ser que não pertencia a este mundo. Facto é que quem se assume, mesmo que não por si próprio, como a voz do povo, não pode ser deste mundo.

«A primeira música do disco será uma adaptação de um fado da Amália», mais coisa menos coisa, deverá ter sido isto que Variações disse aquando da gravação de Anjo da Guarda. Nas poucas amostras televisivas que retrataram a sua obra, conta-se que se gerou algum pânico no estúdio quando saiu aquela frase da boca de António. No entanto, não baixou as suas calças e manteve-se novamente fiel a si mesmo. A adaptação de «Povo Que Lavas no Rio» para o legado que Variações estava a criar foi formidável e a coisa, inesperadamente, começou a ganhar contornos jamais esperados por Variações: pouco tempo depois do lançamento de Anjo da Guarda estava a abrir um concerto para Amália Rodrigues.

E essa ligação não se ficou por aí: se Amália foi uma das figuras da cultura portuguesa que melhor soube como chegar ao público, António Variações daí herdou uma sapiência tremenda para criar hinos e para edificar espaços para a sua própria celebração. Detentor de um estro filosófico peculiar, mas onde sempre enfatizou o povo como primórdio para o seu pensamento, e de uma escrita que nunca se mostrou muito complexa, António tinha os condimentos certos para vingar a partir das suas letras – e embora a sua voz estivesse longe de ser apaixonante, era detentora de um timbre e de alma inconfundível e é fácil de perceber porquê (afinal, vivia-se a fase embrionária de um pequeno grande sonho que acabara de se tornar realidade).

O tempo tratou de esculpir na história e nas pessoas o legado de António Variações. A partir dali citava-se Variações em tudo o que era canto, mesmo sem as pessoas se aperceberem. E a verdade é que hoje em dia isso ainda prevalece. Hoje em dia, isso até nos acaba por ser inato e até julgamos que se tratam de ditos populares, mas não, está tudo nas suas letras. Essa capacidade de criar canções “citáveis” é única. O mesmo se aplica aos slogans que ajudavam a maximizar a sua grandeza; geralmente, as suas composições seguiam um esquema que acabava sempre por enfatizar uma parte da letra (e neste caso nem vale a pena simplificar e dizer que se tratam de refrões; uma canção de António Variações é toda ela um refrão) e a maneira como ela nos persuade a cada audição que lhe damos é absolutamente brilhante. Em boa verdade, foram principalmente estes factores que fortaleceram a sua obra.

Obra essa que se foi cimentando com o tempo, que foi ganhando dimensão à medida que a hipotética Nova York ia chegando com mais ou menos força a Portugal. Cimentou-se sobretudo a partir do momento que houve uma abertura mental em Portugal suficientemente grande (será melhor dizer: a partir do momento em que Portugal deixou de ter uma mentalidade tão fechada) para falar de uma coisa chamada “orientação sexual”. A imagem extravagante de Variações sempre fez com que muita gente o encarasse de lado, ainda por cima quando se viviam tempos pós-ditadura. Depois de editar mais um disco, intitulado Dar & Receber (1984), António Joaquim Rodrigues Ribeiro não resistiu ao vírus da SIDA – assunto que era um completo tabu para a época em Portugal – e acabou por falecer a 13 de Junho de 1984 numa época em que “Canção do Engate”, que integrou Dar & Receber, era uma das canções mais badaladas pelas rádios nacionais. Na altura, para evitar polémicas relacionadas com a orientação sexual de António Variações, a imprensa nacional recebeu a informação de que o músico minhoto havia falecido de broncopneumonina sem que existisse qualquer referência ao facto deste ter contraído o vírus da SIDA.

Foi-se o artista, ficou a obra. E dói pensar que Variações construiu o seu próprio legado num escasso ano de actividade permanente. Do ponto de vista musical, Variações foi aquilo que os nossos tempos teimam em garantir-nos a sua extinção: um ser que vive dos seus sonhos mas que é sempre igual a si mesmo, um ser mais humano do que músico e com canções que conseguem ter uma amplitude social tremenda, um “analfabeto” musical que tem mais música dentro de si do que a esmagadora parte das músicas que saltitam de rádio em rádio. Foi o responsável pela modernização da música pop em Portugal e o seu principal massificador e o que é certo é para nos servir uma nova era nunca precisou de extinguir aquelas que outrora se viviam. Se me perguntassem quem foi António Variações, não teria dúvidas em dizer que foi e que ainda é a voz de todos nós. E estamos órfãos dela desde há trinta anos. “Nova York” chegou-nos para ficar, António também, mesmo que os seus vestígios físicos estejam imersos e bem lá no fundo. Todos nós temos António Variações na voz.


Emanuel Graça




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