sexta-feira, 22 de agosto de 2014

T(H)REE - Entrevista

"In The Shade" é um dos temas que marcam o Verão português de 2014 em matéria de hit singles. Mais uma vez, Moullinex e os Best Youth aparecem a esbanjar talento que ainda sobra para novas edições. Mais uma vez, vamos encontrar o projecto T(h)ree por detrás de alguma novidade, depois de os The Allstar Project terem integrado recentemente na colectânea "Leiria Calling" a sua parte de "Abadeh", tema que criaram em conjunto com os Elf Fatima de Hong Kong para o primeiro volume desta trilogia de colectâneas dedicadas a explorar e sublinhar traços de ligação da música de Portugal com a de vários países do Oriente através de parcerias únicas entre dezenas de artistas.
"T(h)ree vol. 3" - From Portugal to Japan and South Korea" é o último passo desta série e, antes de nos aproximarmos ainda mais da sua data prevista de edição (mês de Outubro), falamos com David Valentim, o mentor e a face mais visível deste projecto que no dia 18 de Dezembro volta a apresentar no Museu do Oriente, em Lisboa, uma nova noite de concertos para mais tarde recordar.






BandCom (BC): É inevitável a pergunta: como surge esta ideia de cruzar a música portuguesa com a música que se faz no Oriente Asiático? O feedback num extremo e noutro tem sido de características semelhantes?

David Valentim (DV): Esta ideia surge em Hong Kong, em 2008. Como na altura organizava alguns concertos naquele território, comecei a dar-me quase exclusivamente com músicos locais, de renome no panorama alternativo. Como nenhum deles conhecia música portuguesa, lembrei-me que seria interessante dar-lhes a conhecer um pouco da minha cultura pondo-os directamente em contacto com músicos de Portugal, de forma a poderem criar algo em conjunto. Estava numa situação privilegiada para promover esse tipo de encontros e assim o fiz. Criava-se então o conceito T(h)ree.
Um ano depois, sairia o primeiro volume da série e o feedback nos dois pontos do globo foi muito positivo e incentivador para continuar.
Acima de tudo, o importante era que se falasse pela primeira vez da música alternativa portuguesa em Hong Kong e que o contrário acontecesse também em Portugal. Assim aconteceu.


BC: Muito embora sejas um arquitecto que tenha estado por Macau e por Hong Kong e o facto de escolher artistas tenha sempre algo que ver com um mínimo de preferência pessoal, o conhecimento que tens do que vai surgindo de novo na música destes países poderia ser adquirido de forma tão fácil se não tivesses já experiência em desenvolver outros projectos na área da música?

DV: Acima de tudo, eu sou um melómano. Não tenho de fazer parte da indústria para saber o que se tem feito de bom na música mundial. Felizmente, tenho tido também a sorte de poder viajar bastante e conhecer muita dessa música ao vivo e em conversas de café com gente local que partilha os mesmos gostos que eu.
Juntando a essa conjuntura uma atitude de produtor apaixonado em detrimento de mero consumidor passivo, isso fez com que eu me atirasse de cabeça um projecto deste tipo.

  
BC: Que características especiais tem a cena musical dos países asiáticos que escolheste para os três volumes?

DV: Vou falar um pouco pela rama, já que a resposta poderia tornar-se demasiado longa.
Hong Kong, Macau e Singapura são três territórios à procura da sua identidade a vários níveis, incluindo a musical.
Enquanto o canto-pop é o estilo musical principal em Hong Kong e que envolve uma industria enorme a sua volta, os músicos alternativos locais são marginalizados. Essa falta de interesse geral, que deriva do avassalador poder do mainstream gossip-pop pela Ásia, faz com que esses músicos não consigam fazer carreira nem ter o incentivo de serem ouvidos para além de um universo mais underground.
Em Macau o problema é o mesmo, mas com a agravante do território ser apenas consumidor e não produtor. Consome-se tudo o que vem de fora e não se trata de incentivar uma criação sustentável dos poucos músicos locais que tentam fazer alguma coisa. Portanto, a cena musical é inexistente e quem quer produzir música com profissionalismo tem de ir para fora para ser ouvido.
Em relação a Singapura é o contrário: há um incentivo enorme à criação, precisamente por não existir uma cultura local. O Governo tem politicas de apoio muito eficazes que fazem com que haja muitos projectos musicais a surgir, com algumas super-estrelas do panorama alternativo asiático a residirem no território. É o caso da Analog Girl, Lunarin e dos Observatory, por exemplo. No entanto, falta à sociedade singapurense uma identidade e, porque não, também aquele lado negro, sujo e decadente das cidades e que é tão apelativo à criação e inovação musical. É um território que produz tudo demasiado by the books. Goste-se ou não dos produtos que vão surgindo, o que é certo é que tem dado resultados positivos numa certa afirmação cultural.
Nas Filipinas há esse lado sujo, caótico e de descalabro a tantos níveis que faz com que o panorama musical local seja talvez o mais atraente do Sudeste Asiático, a par com o da Indonésia e Malásia. A indústria não é forte e tende para a americanização, mas no meio de todo aquele caos terceiro-mundista temos uma variedade cultural que faz com que apareçam projectos com substrato nos mais variados estilos. Infelizmente, e apesar das potencialidades enormes em muitos dos casos, as bandas acabam por se perder numa indústria demasiado fragmentada e economicamente pouco estável. Acabam por ter um reconhecimento a um nível muito local.
Relativamente aos últimos dois territórios, a escala torna-se muito mais global pois quer a Coreia quer o Japão têm divulgado as suas culturas fora de portas de uma maneira extraordinariamente eficaz e que ao longo dos anos tem gerado autênticos cultos no Ocidente.
Ainda que o panorama da música alternativa na Coreia esteja ainda numa fase embrionária, já que o foco momentâneo esta na exportação da k-pop e derivados, começam a aparecer cada vez mais músicos que criam interessantes produtos de fusão entre a cultura local e as novas tendências. O ritmo desses surgimentos tem sido cada vez mais acelerado, pelo que se espera que daqui a uma década a cena musical alternativa local floresça e se torne tão interessante e variada como a japonesa.
Por último, no que diz respeito ao Japão, é fascinante a quantidade de projectos musicais criativamente estimulantes que nascem a cada esquina. Todos eles sustentados por apoios institucionais, editoras especializadas e públicos fidelíssimos.
Penso que o Japão é tão auto-sustentável a nível musical que não está sequer interessado em conquistar o Mundo a esse nível. Mora ali a indústria mais avassaladoramente excitante que este Mundo tem para oferecer.
Em jeito de conclusão, os territórios escolhidos para figurarem no projecto T(h)ree são baseados nas particularidades económicas, geográficas e sociais, sempre com o objectivo de perceber como essas características influenciam o processo criativo e o produto final.


BC: Mais do que uma trilogia de colectâneas, T(h)ree é ou tem sido uma forma de promover a música portuguesa no Oriente?

DV: Tem sido uma forma de se falar de algo que nunca se tinha falado. Quando ouves os Stealing Orchestra e o Maze nas rádios de Singapura, percebes que algo de positivo aconteceu devido a este projecto. Chama-se a isso divulgação.
No entanto, a promoção requer depois uma dedicação que só uma equipa ou um apoio institucional poderão dar. Acredito que isso aconteça em breve e que comece a haver um apoio formal nessa tal promoção. Por agora, o sentimento é que as sementes foram lançadas e o mais difícil foi feito.


BC: Certamente que acompanhaste o desenvolvimento de cada um dos discos lançados. A sonoridade final tem algumas diferenças entre eles: o processo criativo entre os envolvidos também se foi alterando ao longo do tempo?

DV: Em cada álbum há muitos processos criativos. As músicas não são feitas da mesma forma e os resultados variam devido aos diferentes backgrounds dos músicos envolvidos. Cada um tem a sua forma de fazer as coisas e de se relacionar com a música e os seus parceiros. São essas diferenças que conseguimos perceber na variedade do produto final e que dão um lado mais orgânico aos álbuns.





BC: Para este terceiro volume, o primeiro tema que conhecemos é “In The Shade”, uma colaboração entre Moullinex e os Best Youth. Estamos a falar de um tema que resulta em exclusivo da colaboração entre artistas do mesmo país, algo que não sucedia nos dois volumes anteriores. Devemos esperar mais surpresas como esta para este volume?

DV: O volume três tem um conceito diferente. Para finalizar a trilogia, optei por fazer um álbum com três viagens sonoras divididas em três discos. Em cada um desses discos, o processo é feito da seguinte forma: cada músico terá de criar o seu tema a partir do ponto em que o músico anterior deixou o seu. Ou seja, as faixas, de uma forma mais subtil ou directa, estão todas ligadas.
Para embarcar nessa viagem, decidi criar parcerias entre músicos, não necessariamente de países diferentes, e convidar outros apenas para criarem algo a solo.
Continua a haver sempre interacção entre músicos, mas de uma forma ainda mais conceptual.


BC: Em alguns casos, já começamos a ver que algumas bandas, por sua iniciativa, se voltam a cruzar depois das suas participações em T(h)ree mesmo sem nunca ou quase nunca terem contactado directamente. 
Inclusivamente, Os Golpes já terminaram há algum tempo e agora nascem os The Mighty Terns onde Lisboa, Manila, Osaka e Glasgow se juntam de novo para uma só banda; o novo EP dos Bulllet tem uma faixa que resulta da colaboração com a japonesa Chu Makino.
Quais os outros casos de artistas, da tua perspectiva, de maior sucesso e satisfação com a sua colaboração com colegas de outros países?

DV: Um dos meus papéis principais é incentivar a criação para além do T(h)ree. No fundo, com este projecto, o que eu quero transmitir é que este tipo de colaborações resulta e pode transformar-se numa coisa mais “séria” no futuro.
Um dos casos que tem uma componente musical e pessoal mais forte é o da ligação entre o Wilson Tsang e a Joey Chu de Hong Kong e o Bernardo Devlin e os AbztraQt Sir Q de Portugal. O Wilson e a Joey tocaram em Portugal e o Bernardo já foi tocar a Macau com eles. Partilharam o palco em ambas as ocasiões. Tem-se desenvolvido uma ligação de camaradagem e amizade que vai para além da música e isso é óptimo de constatar.
E, já que se fala disso, todos eles juntaram-se e formaram também um projecto musical, estando agora a trabalhar num álbum que provavelmente irá sair em 2015.


BC: Houve algum artista ou artistas que gostasses de ter também juntado? Há outras novas colaborações a surgir à margem do T(h)ree?

DV: Por mais que pareça absurdo, gostava muito de juntar nomes da música ligeira portuguesa com gente do noise nipónico. Cheguei mesmo a tentar fazer isso no volume 3, mas depois desisti com medo de ser mal interpretado. Havia o risco que se pensasse que eu tinha juntado esses dois mundos por mera diversão circense, e não era o caso.
À margem do T(h)ree há várias colaborações a tomarem forma. Por exemplo, o novo álbum dos Balla irá ter músicos asiáticos como convidados, o violinista Gil Dionísio está a preparar um projecto com Toshiji Mikawa, um dos pais do noise japonês, etc.
Há várias colaborações isoladas e outras mais sólidas em cima da mesa.



BC: O T(h)ree é um projecto pioneiro e também ligado a causas solidárias. Estas particularidades são um acrescento de motivação para os músicos envolvidos?

DV: Acredito que sim. Mais o lado pioneiro do projecto do que pelo lado da solidariedade. Infelizmente, sabemos que os álbuns físicos já não vendem, portanto aquilo que conseguirmos juntar para qualquer causa solidária será sempre simbólico.
Todos nós temos noção disso.

Mas se a previsibilidade do mercado é essa, há uma imprevisibilidade no lado pioneiro destes encontros culturais que motiva os músicos. Numa indústria cada vez mais à nora, um projecto destes pode significar uma porta aberta para algo por explorar.


BC: Contudo, ao longo do seu curso, o T(h)ree continuou a debater-se com um fraco reconhecimento da obra feita por parte de alguns agentes culturais. Quais os motivos que consegues apontar para a falta de apoio, por um lado, e será que esses mesmos motivos são ou não os mesmos e são ou não tão influentes nas dificuldades que foste encontrando na internacionalização do projecto? Seria mais fácil fazer tudo, por exemplo, com bandas e géneros musicais com maior projecção (falando sobretudo do caso de países como Portugal)?

DV: Obviamente que seria mais fácil adaptar-me ao mercado e procurar explorar o projecto de um ponto de vista comercial. Mas isso iria tirar o lado genuíno e único da ideia.
Portanto, fiz o álbum e convidei os músicos que quis, como um fã sem qualquer tipo de pressão. Apenas tentei que o produto final fosse diferente de tudo o que se fez anteriormente na música portuguesa.
Este carácter quase anárquico fez também com que fosse mais difícil vender o projecto a potenciais patrocinadores, já que estamos a falar de um produto quase incatalogável.
Acho sobretudo que um projecto como este é uma prova de resistência e que só com vários álbuns e anos de experiência e – ressalve-se - muita insistência, é que começa a haver algum interesse por parte de pessoas que têm o poder de ajudá-lo a crescer. Por agora, há apenas o entendimento acerca do que se está a fazer. Espero que em breve se comece a perceber as potencialidades de um projecto como este. Veja-se por exemplo o sucesso mundial que tem um projecto semelhante como o “Red Hot +...”.  





BC: Fala-se muito nas dificuldades da internacionalização da música portuguesa, mas o T(h)ree  demonstra, por outro lado, o poder de um simples “clique” para um resultado global. Em que pontos estratégicos achas que terão de haver pequenas alterações para que haja uma verdadeira mudança de paradigma?

DV: Essa pergunta é difícil para mim porque eu não faço parte da indústria. No entanto, posso falar do que sei, ou seja, do papel da diáspora na "internacionalização da música portuguesa”.
É do conhecimento geral que há comunidades portuguesas espalhadas por todo o Mundo e que cada vez mais essas comunidades estão cheias de jovens com formação e que são “expulsos” do país em busca de oportunidades de trabalho. Portanto, hoje o tradicional emigrante já não é necessariamente aquele que viaja para França com uma mala de cartão, ouve música pimba e volta a Portugal para construir uma casa com azulejos.
Hoje em dia, o emigrante português é aquele que antes de ter saído de Portugal tinha acesso a uma vida cultural muito interessante e abrangente. É um emigrante culturalmente estimulado.
Portanto, não faz sentido continuarmos com o paradigma que afecta muitas “comissões de festas” por este mundo fora e que se baseia no falso julgamento que o português no estrangeiro só quer ouvir música ligeira portuguesa, velhas glórias ou fado.
Há uma nova geração de músicos dos mais variados estilos que nem sequer entra nas contas destas comissões e a quem poderia ser dada a hipótese de tocar em novos mercados. Não só para comunidades portuguesas mas em eventos organizados por estas onde haja uma integração com a comunidade local, de forma a expandir o público-alvo.
As comunidades portuguesas têm o dever de promover a sua cultura nos locais onde estão a residir e de criar plataformas de ajuda a quem quiser explorar esses mercados. É uma questão de mudança de mentalidades e de tornar o imediatismo por vezes parolo em algo mais pensado e sustentável.


BC: Como balanço final, e para além da simples materialização, quais as grandes conquistas de T(h)ree para os músicos e para a música portuguesa? À semelhança do fado, está aqui outra parte do património imaterial de Portugal?

DV: Para além dos concertos em Portugal, Macau e Hong Kong (e futuros em Taiwan e Japão) relacionados com o projecto, e de se ter dado a conhecer a música portuguesa a muita gente, o T(h)ree é sobretudo um projecto de camaradagem e de relações humanas e artísticas entre músicos que de outra forma nunca se viriam a conhecer.
Musicalmente, poder-se-ia dizer que este é o outro lado do tal património imaterial português. Para além do fado, há toda uma forma de fazer música em Portugal que merece ser igualmente preservada e apoiada.
Se for feita com alma e não com base em fórmulas e números, a música portuguesa terá sempre uma portucalidade inerente. E essa singularidade não pode ser vendida para fora exclusivamente através do fado.


BC: Que futuro, que projectos tens pensados para depois desta aventura T(h)ree? Passar tudo isto para um palco a uma escala maior do que outros eventos que já se realizaram?

DV: Tem havido tentativas constantes de passar o projecto T(h)ree para os palcos, de uma forma sustentável, baseada num festival anual no lugar do planeta que mais tem a ver com este tipo de relações culturais entre a Ásia e Portugal: Macau.
Parece-me a opção mais lógica para se fazer um festival à séria, com um orçamento razoável e com condições apropriadas para atrair o interesse não só do público como dos próprios músicos.
Para além disso, haverá em 2015 um "Japan T(h)ree", organizado por vários artistas que estiveram envolvidos no volume 3 e que levará algumas bandas portuguesas a Tóquio.
O mesmo se está a planear que aconteça em Taiwan.
No fundo, pode-se dizer que o futuro do projecto T(h)ree passa necessaria e exclusivamente pelos palcos. Ficamos com três álbuns lançados para a posteridade e espero que no futuro se olhe para o trabalho desenvolvido e se dê o devido valor.


André Gomes de Abreu




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