Edição: Maio de 2014, Nortesul/Valentim de Carvalho
Classificação final: 9.1/10
Não há
dúvida alguma: os Mão Morta são um
dos nomes mais idiossincráticos que a música portuguesa já viu e, porque não,
que virá. Contam já com três décadas de existência e tomar uma atitude céptica
quando falamos de um novo disco seu é perfeitamente entendível; regra geral,
muitas das bandas com mais de vinte anos de vida que sempre gostámos tendem,
nos seus discos recentes, a dar-nos a nostalgia necessária para regressarmos
aos seus antepassados. No caso da banda de Adolfo Luxúria Canibal &
Companhia isso está longe, muito longe, de se verificar: Pelo meu relógio são horas de matar é o 13º disco em formato
longa-duração que os Mão Morta fazem
chegar até nós e jamais a nostalgia correrá pela nossa cabeça, porque se
constrói a partir da modernidade.
Paralelizando,
os Mão Morta são como uma espécie de
Swans portugueses: várias formações
da banda, onde sempre se conservou o perfil peculiar do poderoso Adolfo, mais
de trinta anos de existência pautados por uma regularidade discográfica
tremenda, constantes apelos ao industrial e ao spoken-word e a necessidade de haver uma banda, quase orquestra,
submissa à espera que o seu maestro surja e conduza todos os acontecimentos. Em
comum, existe ainda mais uma coisa: ambas voltaram à carga em 2014, os
primeiros com To Be Kind, os segundos
com Pelo meu relógio são horas de matar.
Quando se passou a conhecer o primeiro avanço do novo disco de Adolfo & Companhia, “Horas de Matar”, previa-se que os bracarenses fizessem um disco recaído na preocupação com os tempos em que vivemos. A previsão inicial rapidamente se torna uma certeza quando ouvimos o ponto de partida do álbum; “Irmão da Solidão” é uma canção que, a avaliar pelo single que nos tinham demonstrado, faz todo o sentido: «Eu sou um irmão, um irmão da solidão. Sempre um irmão da solidão».
Não é para
Adolfo que está prestes a chegar a hora de matar, é para todos nós - cidadãos.
Não no seu sentido literal, não dramatizemos ainda mais a tempestade de cabeças
ocas que se insurgiram contra o vídeo da canção de avanço do disco, mas no seu sentido
literário: os coros de “Horas de Matar”, seguidos dos versos parafraseados pelo
enorme Luxúria «Também pelo meu relógio
são horas de matar», despertam isso. Fazem despertar qualquer um, é clímax
de quando uma canção deixa de ter qualquer rótulo que não o de música social. O
disco rege-se por todo esse paradigma. Não é apenas mais um disco dos Mão Morta, é um disco que foi feito
para também nos pertencer.
E
pertence-nos; as partes de todos nós que se ilustram em “Hipótese de Suicídio”
ou na maré de esperança vazia, mas triunfal, de “Nuvens Bárbaras”. «O futuro não é uma fonte de esperança, só
nos resta a indigência». Pelo meio de uma paisagem repleta de verdades, existem
“Pássaros a esvoaçar” à procura de um naco de pão, de uma oportunidade. Não a
encontram, são “Preces Perdidas”. E tantas seriam se as contássemos por cada
vez que todas elas de nada nos valessem.
Pelo meu relógio são horas de matar sofre uma alteração tremenda na sua
segunda metade; “De coração aceso” é o melhor dos presságios possíveis para
sabermos que a partir dali chegam uns Mão
Morta mais frios, mais introspectivos, mais históricos. «Com sangue no meu coração, ficará manchado o
caminho». Já dizia José Saramago que o seu coração era de carne e não de
ferro e que, por isso, sangrava a toda a hora. No caso dos Mão Morta, a história é idêntica: também existe uma dor
suficientemente grande para atormentar o seu coração. O problema, que não é
problema nenhum, é que o coração dos Mão
Morta retratado em Pelo meu relógio
são horas de matar é composto por partes de cada um de nós. No fim, por
certo, estaremos todos lá – nós e os “Ossos de Marcelo de Caetano”, que estão/estarão
de regresso ao palácio de São Bento.
«Não há maior alegria do que a do sonho da
vitória» diz-se em “Histórias da cidade”. Por enquanto, os Mão Morta ainda não podem dizer que
tiveram a maior das alegrias com Pelo meu
relógio são horas de matar. Para o poderem, faltam-lhes, a eles, nós, cidadãos.
Falta celebrarmos o disco, falta-nos perceber que o constante declínio da nação
poderá, um dia, chegar ao seu limite. Caminhamos, a passos largos, para que
isso aconteça. Tudo está mais perto que ontem, amanhã mais do que hoje. Falta
também nos apercebermos que pelo nosso relógio são horas de matar. Os coros da
canção dos Mão Morta já o vão
dizendo e já se vão ecoando nas nossas cabeças, mas falta cumprir-se algo ainda
mais fulcral: nós.
Emanuel Graça
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