terça-feira, 27 de maio de 2014

MÃO MORTA - PELO MEU RELÓGIO SÃO HORAS DE MATAR (2014, Nortesul/Valentim de Carvalho)

Edição: Maio de 2014, Nortesul/Valentim de Carvalho
Classificação final: 9.1/10

Não há dúvida alguma: os Mão Morta são um dos nomes mais idiossincráticos que a música portuguesa já viu e, porque não, que virá. Contam já com três décadas de existência e tomar uma atitude céptica quando falamos de um novo disco seu é perfeitamente entendível; regra geral, muitas das bandas com mais de vinte anos de vida que sempre gostámos tendem, nos seus discos recentes, a dar-nos a nostalgia necessária para regressarmos aos seus antepassados. No caso da banda de Adolfo Luxúria Canibal & Companhia isso está longe, muito longe, de se verificar: Pelo meu relógio são horas de matar é o 13º disco em formato longa-duração que os Mão Morta fazem chegar até nós e jamais a nostalgia correrá pela nossa cabeça, porque se constrói a partir da modernidade.

Paralelizando, os Mão Morta são como uma espécie de Swans portugueses: várias formações da banda, onde sempre se conservou o perfil peculiar do poderoso Adolfo, mais de trinta anos de existência pautados por uma regularidade discográfica tremenda, constantes apelos ao industrial e ao spoken-word e a necessidade de haver uma banda, quase orquestra, submissa à espera que o seu maestro surja e conduza todos os acontecimentos. Em comum, existe ainda mais uma coisa: ambas voltaram à carga em 2014, os primeiros com To Be Kind, os segundos com Pelo meu relógio são horas de matar.

Quando se passou a conhecer o primeiro avanço do novo disco de Adolfo & Companhia, “Horas de Matar”, previa-se que os bracarenses fizessem um disco recaído na preocupação com os tempos em que vivemos. A previsão inicial rapidamente se torna uma certeza quando ouvimos o ponto de partida do álbum; “Irmão da Solidão” é uma canção que, a avaliar pelo single que nos tinham demonstrado, faz todo o sentido: «Eu sou um irmão, um irmão da solidão. Sempre um irmão da solidão».

Não é para Adolfo que está prestes a chegar a hora de matar, é para todos nós - cidadãos. Não no seu sentido literal, não dramatizemos ainda mais a tempestade de cabeças ocas que se insurgiram contra o vídeo da canção de avanço do disco, mas no seu sentido literário: os coros de “Horas de Matar”, seguidos dos versos parafraseados pelo enorme Luxúria «Também pelo meu relógio são horas de matar», despertam isso. Fazem despertar qualquer um, é clímax de quando uma canção deixa de ter qualquer rótulo que não o de música social. O disco rege-se por todo esse paradigma. Não é apenas mais um disco dos Mão Morta, é um disco que foi feito para também nos pertencer.

E pertence-nos; as partes de todos nós que se ilustram em “Hipótese de Suicídio” ou na maré de esperança vazia, mas triunfal, de “Nuvens Bárbaras”. «O futuro não é uma fonte de esperança, só nos resta a indigência». Pelo meio de uma paisagem repleta de verdades, existem “Pássaros a esvoaçar” à procura de um naco de pão, de uma oportunidade. Não a encontram, são “Preces Perdidas”. E tantas seriam se as contássemos por cada vez que todas elas de nada nos valessem.

Pelo meu relógio são horas de matar sofre uma alteração tremenda na sua segunda metade; “De coração aceso” é o melhor dos presságios possíveis para sabermos que a partir dali chegam uns Mão Morta mais frios, mais introspectivos, mais históricos. «Com sangue no meu coração, ficará manchado o caminho». Já dizia José Saramago que o seu coração era de carne e não de ferro e que, por isso, sangrava a toda a hora. No caso dos Mão Morta, a história é idêntica: também existe uma dor suficientemente grande para atormentar o seu coração. O problema, que não é problema nenhum, é que o coração dos Mão Morta retratado em Pelo meu relógio são horas de matar é composto por partes de cada um de nós. No fim, por certo, estaremos todos lá – nós e os “Ossos de Marcelo de Caetano”, que estão/estarão de regresso ao palácio de São Bento.

«Não há maior alegria do que a do sonho da vitória» diz-se em “Histórias da cidade”. Por enquanto, os Mão Morta ainda não podem dizer que tiveram a maior das alegrias com Pelo meu relógio são horas de matar. Para o poderem, faltam-lhes, a eles, nós, cidadãos. Falta celebrarmos o disco, falta-nos perceber que o constante declínio da nação poderá, um dia, chegar ao seu limite. Caminhamos, a passos largos, para que isso aconteça. Tudo está mais perto que ontem, amanhã mais do que hoje. Falta também nos apercebermos que pelo nosso relógio são horas de matar. Os coros da canção dos Mão Morta já o vão dizendo e já se vão ecoando nas nossas cabeças, mas falta cumprir-se algo ainda mais fulcral: nós.

Emanuel Graça






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