sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

FERNANDO LADEIRO-MARQUES - ENTREVISTA

De 16 a 18 de Outubro teve lugar o MaMa, festival durante o qual foram propostos cerca de 100 concertos e mais de 40 conferências dedicadas aos profissionais do mundo musical. Por detrás deste evento parisiense está um francês de origem portuguesa, uma cara bem conhecida dos festivais franceses e estrangeiros: Fernando Ladeiro-Marques.




BandCom (BC): Porque decidiu consagrar a sua vida profissional ao mundo da música? Foi um acaso?

Fernando Ladeiro-Marques (FLM): A música sempre foi uma das minhas paixões, mas torná-la num emprego foi um acaso. Tenho uma formação em Ciências Económicas e em História, duas coisas que não são muito ideais para se lançar neste meio, e os encontros que fui tendo ao longo do tempo. Estudei Cinema e, nesse âmbito, encontrei uma pessoa que veio ter comigo e que me disse “trabalho no Printemps de Bourges”. Nessa altura, eu fazia “rádio livre” e pensei assim: “Vamos a isso! Vamos trabalhar um pouco no meio musical!”. Fiquei então a conhecer esse mundo do interior, porque aquilo que conhecemos dele não corresponde muito à realidade. Criei a minha própria produtora (Gato Loco Productions) e comecei a organizar festivais no estrangeiro há 15 anos - e também em Portugal, onde criei o Cosmopolis.


BC: No momento da programação musical, o que faz com que um artista seja convidado para atuar no Printemps de Bourges e não no MaMa?

FLM: O mesmo artista pode atuar nos dois. não há problema nenhum. O objetivo, a finalidade do Printemps de Bourges é que não é a mesma.
O Printemps de Bourges é um festival de grande público. Estamos numa relação entre um artista e um público. 

O objetivo do MaMa, o seu DNA, são os encontros profissionais. De dia, temos conferências, meetings, ateliers... a ideia era permitir aos profissionais conhecerem-se, encontrarem-se e iniciarem colaborações comerciais ou outras. À noite, a partir das 18h, temos concertos gratuitos e às 20h concertos abertos aos profissionais e ao público.
No âmbito do MaMa, é preciso que os artistas sejam internacionais, mas também que já estejam inseridos num certo ambiente profissional, porque se tiverem quatro festivais a quererem contratá-los e não estiver ninguém para conversar com eles!.. 

Têm também de ter um certo potencial para exportação. Há grupos franceses que enchem salas em França mas que fazem uma música tão franco-francesa que é impossível para eles encher uma sala no estrangeiro. Há um certo equilíbrio a encontrar.
Os artistas internacionais que vêm são na sua grande maioria artistas já conhecidos nos seus países, ou então temos artistas como os Archive que tinham um novo espetáculo que queriam mostrar a muitos festivais porque achavam que era completamente novo, diferente quando comparado com o que costumavam programar. E acharam que o MaMa era perfeito para isso. 



BC: Esse concerto dos Archive acabou por ser um jackpot?

FLM: É e não é. Nesse nível é, mas já tivemos General Elektriks, Moriarty... 
Muitos artistas chegam até nós, se calhar um pouco menos conhecidos que eles, mas escolhem-nos também porque é a rentrée, uma época interessante e todos os programadores dos festivais vêm para elaborar as suas programações de Verão. 
Para o artista, quando ele vem, ele sabe que vai atuar perante profissionais, sempre. Que vai ter 20 a 30 concertos depois. Até há artistas franceses que montam a sua tournée em França no MaMa, vêm e depois têm 20 datas em salas de espetáculo em França.




BC: Quais foram os debates mais aguardados para este ano?

FLM: Há dois grandes temas que interessam muito: o digital e o financiamento alternativo, (crowdfunding, etc.). 
Temos também debates mais genéricos, como por exemplo a posição das mulheres na música. Demo-nos conta de que há muito poucas mulheres em posições-chave, de decisão no mundo da música, quando sabemos que normalmente o meio cultural é dito como sendo “mais aberto”. 
Fizemos também este ano um debate no Luxor sobre o que pode ligar a música à imagem, isto sabendo que a imagem é cada vez mais um recurso económico importante no mundo da música, do cinema, da televisão, da publicidade, dos videojogos... 
E temos conferências mais generalistas e outras mais pedagógicas, bem como uma vertente internacional, para saber como é que um problema pode ser resolvido neste ou noutro país. Tivemos, por exemplo, também um debate muito interessante sobre os Novos Mercados. 


BC : O facto de querer aliar a esfera económica à cultural não provocou algumas reticências nos seus interlocutores?

FLM: Não estou a ver porquê. Uma coisa é certa: nenhum artista faz discos para não os vender. Durante muito tempo, na Europa, pensámos que a economia, o dinheiro, eram o diabo. Não devemos pôr em confrontação a economia e a música.


BC: O Europavox ainda corresponde à ideia que tinha dele quando o criou?

FLM:  Acho que a parte "mercados/encontros profissionais" desapareceu. É diferente, claro, mas continua a ser um festival original, embora agora tenhamos obrigatoriamente de ter 27 grupos diferentes de cada país [da UE].
Mesmo assim, acaba por ser um dos únicos festivais onde podemos ver um artista maltês...


BC: Não vos choca que num festival como o Europavox os grupos sejam cada vez mais próximos, a nível de música, de língua..?

FLM: Não creio que isso seja um problema específico do Europavox. É assim em todo o lado, mas também não corresponde 100% à realidade. Por exemplo, o hip-hop em França continua a ser feito em francês, a dita chanson française também continua a ser feita em francês. 
Depois, no resto da Europa, é verdade que 90% dos artistas cantam em Inglês e isso não acontecia há 15 anos. Mas deve-se a vários fatores: há 20 anos, muitos artistas pensavam que ao cantar em Inglês, a internacionalização seria facilitada. Ora as pessoas preferem sempre o original à cópia e o sotaque dos grupos nem sempre era perfeito...e havia também um complexo em relação à música anglo-saxónica. 
E chegaram bandas como os Rita Mitsouko, a Mano Negra, que descomplexaram os artistas que demonstraram que ao cantarem em francês, ao utilizar as raízes da música tradicional francesa como o acordeão, isso trazia uma dimensão diferente que podia tornar-se numa vantagem. E isso abriu durante alguns anos as portas à música made in France
Agora, na nova geração que cresceu com cantores ingleses, que sabe escrever em Inglês, as bandas já não cantam a pensar na internacionalização. Tudo é muito mais natural - mas se forem à Escandinávia, todos os grupos cantam em Inglês, desde sempre. Na Áustria, na Alemanha, todos os grupos pop rock também cantam em Inglês.


BC: Não acha que pode parecer paradoxal querer incentivar os intercâmbios quando somos cada vez mais parecidos, tanto cultural como mentalmente?

FLM: É porque somos cada vez mais idênticos que os intercâmbios funcionam. 
Porque se tivéssemos mercados completamente diferentes, não seria fácil impor os produtos. 
Antigamente, quando eras Francês ou Português, era impossível exportares. Hoje, em França, as coisas mudaram muito, com 25 anos de políticas culturais, de desenvolvimento dos artistas e da imprensa. Em Portugal, não há nenhuma vontade política de ajudar a música, nenhuma política cultural, quando muitos artistas têm um forte potencial internacional. Mas não os vemos, não têm apoios.


BC: Quais são as grandes diferenças que encontrou ao criar festivais nos ditos "novos mercados" ?

FLM: Não há grandes diferenças, é tudo mais ou menos igual. 
As necessidades são parecidas; as diferenças têm mais a ver com as especificidades dos países em questão, como por exemplo na China onde são precisas muitas autorizações. 
Mas não há diferenças notórias: talvez na maneira de promover as coisas, a nível de mentalidades, de experiências, mas se fizeres um festival na Finlândia e depois em Portugal, também não é a mesma coisa.


BC : Musicalmente, abre o seu horizonte, não é? Agora, que continente é que lhe falta no currículo?

FLM: Descobrir novas coisas é sempre muito interessante e permite alargar horizontes, mas o objetivo não é estar presente em todos os continentes. Quando criei o BAM, ao fim de três-quatro anos, queria ver outra coisa: se não tivesse saído, ainda estava a organizar o BAM hoje. Para desenvolver coisas, é preciso abandonar outras. O Europavox é igual. E também é mais fácil organizar um evento em Paris do que em Clermont-Ferrand. 


BC : Que ligação tem agora com o seu país de origem?

FLM: É muito elástica. Durante muito tempo foi um país para férias. 
Tenho família lá, sou da região de Lisboa e os meus pais chegaram a França antes de 62, antes da grande vaga de emigração. 
Na escola, cresci com franceses quando os únicos estrangeiros eram os “Pieds Noirs”. 
Em 2000 lancei a primeira edição do Cosmopolis e durante oito anos trabalhei com Portugal. A minha relação com o país ficou muito mais forte, comecei a falar melhor e depois comecei a trazer para França artistas portugueses que descobri. Apercebi-me de que havia um verdadeiro potencial.




BC: Que projetos portugueses aconselharia?

FLM: Há muitos. Wraygunn e o projeto a solo de Paulo Furtado The Legendary Tigerman. Noutro género, os Deolinda, os Dead Combo, que estiveram na época passada no MaMa e que tiveram logo vários contratos. 
Mas o exemplo mais gritante para mim é Buraka Som Sistema, que foram durante muito tempo apreciados em Portugal mas que tiveram de assinar por uma major inglesa para poderem ter uma carreira internacional. 
Penso que Portugal é muito criativo e há também uma coisa muito importante, como em França, que é a mistura cultural. O facto de Portugal ter africanos, brasileiros, etc., permitiu misturas musicais interessantes que não há noutros países. Por exemplo, em Espanha, a oferta é muito menos interessante...mas contudo conseguem vender-se muito melhor!


BC: E sobre o facto de que o fado é o género musical português que mais se exporta..?

FLM: É preciso relativizar. A Mariza, por exemplo, funciona bem em Paris mas em Clermont-Ferrand tivemos todas as dificuldades do mundo para encher a sala e metade dela era gente convidada! 
Pensámos que era bom termos fado, até porque também há uma comunidade portuguesa muito forte lá, mas quando organizava os concertos de Madredeus, a comunidade portuguesa não vinha. 
Lembro-me do primeiro concerto dos Xutos & Pontapés, no Cirque d’Hiver, organizado por uma associação portuguesa. O público era só portugueses, havia avós e tudo! Pessoas que não os conheciam mas que só tinham vindo porque eram portugueses e isso não é o que os grupos querem: quando vêm a França não querem fechar a porta à comunidade portuguesa, também não é isso, mas a ideia é a de atuar perante outro público. 
Depois, montámos-lhes uma tournée com a Mano Negra e aí atuaram perante outro público, atento à música, e não apenas porque eram portugueses. 
Há muitos artistas que só atuam na comunidade. Porque não?! 
Os artistas pimba fazem-no, grupos como os Buraka não. 


BC : Ouviu falar do FUSING, festival com apenas música portuguesa?

FLM: Não, mas os Portugueses não gostam muito quando os festivais ou concertos são a pagar. As câmaras destruíram tudo ao oferecer concertos gratuitos. Foi um método para ganhar o interesse dos seus eleitores e agora, quando um grupo dá um concerto a 5 euros e que três meses depois vem de graça... o português não vai hesitar. 
Mas é preciso sempre dar três anos a um festival novo como esse. O problema de Portugal é que os festivais aparecem tão rapidamente como desaparecem. 
Não se podem montar festivais sem nenhum apoio. Por exemplo, se não tivéssemos apoios privados, institucionais, os bilhetes para o Printemps de Bourges seriam muito mais caros! Sem essas ajudas, ou fazemos os bilhetes a 100 euros, ou convidamos os artistas que vemos na TV. O problema é que se não prepararmos a nova geração, quando as estrelas de hoje acabarem não temos mais ninguém! Em Portugal, a nova geração está no alternativo completo. TV, rádio...não há espaço para eles. 
Dou-vos um exemplo: uma vez, havia uma noite com três/quatro grupos portugueses muito bons e uma pessoa de um diário muito importante disse que não podia vir porque o 50 Cent atuava na mesma noite. A mentalidade portuguesa é esta. Mesmo sabendo que o artista não vale nada, vamos na mesma, mesmo se há algo mais interessante a ver. Portugal é uma aldeia, toda a gente se conhece, mas ninguém quer trabalhar em equipa. Mas as coisas podem mudar com a nova geração, ou então é talvez preciso que o país caia completamente no abismo para que as coisas se façam. Há muitos produtores e pequenas estruturas que fazem coisas muito interessantes em Portugal: o problema é que não têm a notoriedade ou não sabem promover os eventos. 
No primeiro ano do Cosmopolis começámos com uma noite de moda, com três DJ’s, uma Húngara, uma Portuguesa e uma Canadense. Tínhamos criadores de moda como Gaultier, Lacroix e havia muitos jornalistas estrangeiros que convidei, tal como queria convidar pequenas editoras, pequenos produtores, para que se pudessem encontrar com os seus homólogos ocidentais. Naquela altura, essa ideia foi muito mal vista. Disseram-me: “oh, não vale a pena, só há 2 ou 3 interessantes...”. 
E dei-me conta mais tarde de que era completamente falso! Eles quererem avançar mas apenas se os outros não avançarem com eles! As estruturas que querem federar as pessoas não têm meios para o fazer. 
A mim aceitaram-me mais porque vinha do exterior, não me viam como um concorrente. Há pouco tempo montei uma noite no Musicbox, um evento que ligou as cidades de Paris, Lisboa e Montréal. Telefonei para uma pessoa que tem uma pequena estrutura, ultra-motivada, que sabe organizar as coisas muito bem, mesmo se não tem um salário enorme. É uma pessoa que pertence a uma geração mais nova, que tem outra vontade. 
Há um verdadeiro potencial em Portugal. Os jovens são inteligentes e têm vontade.


BC: E com a crise, é pior?

FLM: Desde que vou a Portugal há crise! Mas a crise não impede que as coisas sejam feitas. Em Portugal, a cultura nunca foi uma prioridade. Há a Gulbenkian, que tem se calhar um orçamento superior ao Ministério da Cultura... 
Fazem coisas interessantes, mas não é música atual: é mais música contemporânea, clássica... é pena porque há muita coisa a fazer e uma fundação como essa podia ajudar a preencher a brecha deixada pela falta de apoio por parte do Ministério da Cultura.


BC: Quais são os seus projetos neste momento?

FLM: O MaMa, dois novos projetos em Pequim e São Paulo, e quero voltar a lançar o Cosmopolis. No que diz respeito a Portugal, tive um flash há uns anos atrás. Fui convidado para um festival na Estónia, em Tallinn, onde há pequenos concertos em vários pontos da capital, um pouco como o MaMa, com Estónios, Letónios e Finlandeses. 
Havia muitos meios, grandes profissionais, e o objetivo era fazer-nos descobrir durante três dias a qualidade da produção estónia para permitir uma futura exportação. 
Estava muito bem organizado. O único problema é que, em três dias de concertos, só vi uma ou duas bandas interessantes e todas as condições tinham sido postas à disposição dos artistas. Ao fim e ao cabo, a Estónia é o contrário de Portugal, onde temos boas estruturas e apoios mas não temos nenhum produto a exportar. 
Se os artistas portugueses tivessem o mesmo apoio que os estónios em Tallinn!..
Em Portugal, há muita inveja entre os produtores: quando alguém monta um projeto, ninguém o ajuda, esperam que o projeto se afunde. O que falta lá é um espírito federativo para lutar contra a inexistência de vontade política em ajudar a indústria musical. 
Quando o bolo é pequeno, há duas soluções: ou juntam-se todos para que ele seja melhor ou partilham-no. E muita gente em Portugal prefere guardar o pouco que tem do que fazê-lo crescer.


Mickaël C. de Oliveira


(parte da entrevista publicada no Lusojornal)




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