terça-feira, 29 de outubro de 2013

GISELA JOÃO - "GISELA JOÃO" (2013, Valentim de Carvalho)


A mais velha de 7 irmãos, o primeiro fado com que se identificou e apaixonou, aos 8 anos, foi o “Deus Me Perdoe” de Amália Rodrigues. 
Do pátio do prédio ao topo do fado foi uma longa caminhada: Gisela João, nascida e criada em Barcelos, até há mais ou menos 3 anos nunca achou possível fazer da música a sua vida mesmo estando já dentro de um auspicioso circuito de pré-carreira com que Nicholas Jaar contracenou no Lux Frágil.

Agora, já com o disco homónimo lançado, estreou-se e faz sucesso no circuito nacional e internacional deste género que define mundialmente Portugal. Perdeu-se, pelo caminho, a carreira de designer de moda descendente de quem
 sempre teve relações laborais com a indústria têxtil, interiorizou-se as noites inteiras de acapellas na "Adega Lusitana", em Barcelos, e ganhou-se as noites de fado n' "O Fado", restaurante da Invicta, o percurso como voz dos Atlantihda e a residência naquele local que é conhecido como a "grande universidade do fado", o “Sr. Vinho”. Afinal, “o cavalo da sorte só passa uma vez, da segunda vez já vai montado”.

Composto por 14 temas, há no registo de estreia de Gisela João espaço para uma panóplia de sentimentos, entre a melancolia de um “Meu Amigo Está Longe” e a alegria de um “Malhão e Vira”. Encontram lugar nas histórias a que Gisela dá vida o amor e a desilusão, mas também um olhar sobre o quotidiano. Tudo é um retorno às origens do fado, em que estão lado a lado interpretações de Amália Rodrigues ("Sei Finalmente", "Meu Amigo Está Longe" e "Maldição) e Flora Pereira ("Sou Tua", "Voltaste") e dos "esquecidos" Carlos Ramos (“Não Venhas Tarde”) e Manuel de Almeida (“Antigamente”) e inéditos assinados por Goulart Nogueira, João Loio e Aldina Duarte, chegando até a haver uma adaptação do clássico “A Casa da Mariquinhas” em conjunto com a rapper portuense Capicua: uma colaboração que apesar de parecer improvável faz todo o sentido, pois ambas as vertentes musicais pretendem retratar a realidade portuguesa. 





A interpretação em “Madrugada Sem Sono” torna um universo de tristeza num grito de revolta e de força infinita. Uma letra que aparentemente seria o retrato fiel do abandono, que poderia ser cantado em tom melancólico é, ao invés, cantado de forma emocionada e confiante. “Vieste Do Fim Do Mundo”, de João Loio, fala-nos da entrega a um amor desconhecido de forma tão grandiosa como as notas soltas pelas cordas vocais de Gisela. “Primavera Triste” é um pedido de afecto, uma demonstração de carência que sofre pela espera do seu amor.

Gisela sangra e sofre, mas não morre. Vive todas as emoções, sejam elas positivas ou negativas, mas uma coisa é certa: elas estão vivas, com a mesma força de um furacão. “Sou Tua” chega a conter alguma ironia, quando a fadista afirma ser “tão pequenina e tão muda” perante o seu amor: o 
amor de uma vida, para o qual se nasce e que vem contar da junção de dois entes - “e para ser tua nasci”, mas não é correspondido. E ainda assim, esta canção não deixa de parecer uma celebração, sentindo-se apenas um soar de lamento no final.
“Voltaste” começa num tom mais intimo e é uma dicotomia de emoções. Apesar da alegria sentida pelo regresso, a mágoa e a lembrança do sofrimento sentido face ao amante, não foge. Esta é uma luta contra ao passado, que apesar de deixar as suas marcas, não apaga o sentimento, tomada por quem revela que consegue transmitir todo o tipo de sensações, provar de uma alma vivida e marcada pelo sofrimento e pela alegria extremas.
“Sei Finalmente” é certamente um desafio ao qual Gisela fez jus. Por entre um amor não correspondido, existe a compaixão para com a dor dos mal-amados, da vida como uma cruz perante o desdém de quem se preza. A fadista canta com tanta serenidade face à dor, como se esta fosse uma constante na sua vida, e capaz de tornar o pior dos sofrimentos num tema que nos embala e nos leva à mais profunda das emoções.

Se “Meu Amigo Está Longe” exibe o quão intenso pode ser esse sentimento chamado “saudade”, “Maldição”, de voz mais encorpada em relação a Amália, chama a atenção para a falta de sintonia entre o coração e o seu ser, agonia na vida de quem não se sente satisfeito com a vida e amor. “Não Venhas Tarde”, de Carlos Ramos, traduz a indecisão do amante que trai: o dilema de quem em vez de um amor tem dois num tom de aparente calma e serenidade, mais suave do que é costume em outros registos.
“Antigamente” é uma ode ao fado e às tradições fadistas clássicas, que se encontravam de certa forma perdidas e a que a fadista quer dar de novo voz, mais vivida e alegre, que apesar de conter alguma nostalgia é também uma exaltação. 

Todos os temas contidos neste disco são inerentes à génese do fado. Porém, em Gisela João nada é convencional. Todas as influências culturais: as tradicionais (em que se encontra o fado e a música tradicional portuguesa) e as inovadoras (Gisela é apreciadora de trance, techno, rap, e muitas outras vertentes musicais), misturam-se numa só alma e, ainda que a voz dessa alma seja fadista, não existe parte sem o todo. Como a própria canta “não é fadista quem quer mas sim quem nasceu fadista”.






Catarina Bessa




0 comentários:

Enviar um comentário

Twitter Facebook More

 
Powered by Blogger | Printable Coupons