domingo, 3 de março de 2013

LÁ FORA, CÁ DENTRO #6 - ENTREVISTA COM KIMTO VASQUEZ




Ex-membro do grupo de rap francês Less du Neuf, Kimto Vasquez, de origem portuguesa, editou o seu primeiro álbum a solo "L’Océan" em 2012 com a colaboração e ajuda de outro luso-descendente, Luisinho Beatmaker, e de Ben Bridgen. Onze faixas cheias de poesia que foram muito rapidamente reduzidas por alguns a uma música mais polémica, valendo-lhe entre outras coisas uma censura na "Les Inrockuptibles". O BandCom resolveu então encontrar-se com o artista : falou-se do álbum, das suas convicções e não só…

BandCom (BC): 
Quando sabemos que és de origem portuguesa e que escolhes como título de álbum "L’Océan" pensamos que vais falar dos Descobrimentos…
Kimto Vasquez (KV): Uma música como a dos La Harissa, "Conquistador"… (risos)


BC: Mas quando conhecemos o teu percurso, o teu antigo grupo Less du Neuf e a letra de "L’Etranger", ficamos à espera de outra coisa…
KV: 
Algumas frases dessa canção são um pouco ingénuas. Digamos que Portugal era um país colonizador, temos de o reconhecer. Muitas famílias portuguesas foram marcadas por isso, como a minha. O irmão mais velho da minha mãe morreu lá (em Moçambique), aos 24 anos. Fomos colonizadores até muito tarde, os últimos a "abandonar" essas terras oficialmente, porque oficiosamente...ninguém as abandonou.

BC: "L’Océan" é também uma homenagem à tua aldeia em Portugal, Vila Praia de Âncora…
KV: Sim. É também uma metáfora da canção, da travessia, da vida. A referência extra é a tasca do meu avô, com vista para o mar, onde adoro ir. É uma palavra com muito sentido, nas outras canções do álbum também.

BC: Também sentimos essa ondulação na tua maneira de cantar…
KV: Sim, pedi aos meus músicos para que houvesse vida, ritmo, relevo. Não queria que fosse um rap sem asperezas, plano: pedi surpresa. Também podia tê-lo intitulado  "Montanha" (risos).

BC: Ao ouvir o teu álbum, lembrei-me também dos Dealema. Essa obsessão da queda, do abismo… inspiraram-te?
KV: Sou fã do Fuse, sobretudo do primeiro álbum dele a solo. Não fui influenciado pelos seus textos. Penso que são imagens que temos em comum porque vemos as coisas da mesma forma. Nunca me encontrei com ele mas a sua mensagem tocou-me muito. Quando ouvi "Prémio Nobel" tive calafrios, sabes? Sou muito assim: à música, peço-lhe que me faça reagir a nível epidérmico…

BC: A meu ver, é em "Amen" que mais consegues conciliar as tuas convicções, o teu rap e o lado mais poético…
KV: O equilíbrio é uma interrogação que tenho em todas as músicas. Encontrar o ambiente certo, a mesma musicalidade…

BC: Não tens medo de denunciar o poder das instituições financeiras. És um dos únicos rappers em França a falar disso (bem também há o "Suicide Social" do Orelsan)...
KV: Até gostei dessa música do Orelsan, mas ele não é o único. O Mysa, há anos que ele bate em tudo! As finanças, as sociedades secretas, o sionismo, e na visão de todos é um reacionário. Há anos que ele é boicotado, tanto que só o descobri em 2011. Ah, e numa crónica que fizeram sobre o meu álbum, compararam-me a ele… "estou um pouco deprimido", sabes? E estou a virar "antissemita e extrema-direita porque estou deprimido…". O cronista "psicologizou" um pouco a coisa.

BC: Todos os anti-semitas não aderem forçosamente às teorias de extrema-direita…
KV: Os gajos nunca quiseram ler um livro diferente. Parece que são obrigados a explicar porque é que um gajo brilhante como eu escreve asneiras destas. Os da Inrocks… fartei-me de rir. A partir do momento em que compreendes o caso Dieudonné, é normal que uma coisa como a minha, com algum eco, acabe por ser apagada. Os comerciais da Musicast tiveram algumas dificuldades em pôr o disco nalguns pontos de venda. Têm de ser transparentes e dizer que algumas músicas são um pouco polémicas, e que eu apoio o Dieudonné. Mas é normal, não quero fazer-me de vítima. Apenas dizer às pessoas : apagaram-me de uma crónica.

BC: E a tua idade (37 anos) não deve ajudar…
KV: Pois. Como é que eles podem acusar-me de apoiar o Le Pen ou de votar na extrema-direita quando ouviram "L’Etranger", ou "Fils d’Immigré"? Os gajos sabem quem sou, com quem eu cresci…

BC: Ao ouvir-te...votas?
KV: Já votei, quando era mais jovem, mas agora não. Acreditei muito nisso. O meu pai, que viveu na época da ditadura, sempre me disse: "a democracia é algo de bom, tens de votar". Sempre respeitei muito isso. Até no rap, era um dos únicos a votar. Mas sabes, o maior partido de França são os votos brancos, os abstencionistas, as pessoas não-inscritas… eles é que contam. A democracia de opinião é merda. Sobre isso, convido os leitores do BandCom a ler Etienne Chouard.

BC: Gostavas de fazer política?
KV: Não, não me interessa.



BC: "Ton Satellite" foi para mim um verdadeiro "ovni". Uma música dedicada ao teu filho, correcto?
KV: É um capítulo do álbum. Este álbum é para ele e para o irmão mais novo: espero poder deixar-lhes outra coisa. Tenho medo do futuro deles e o meu também é incerto. Quando és pai, tudo te passa pela cabeça. Nunca tinha pensado na morte antes de ser pai. Este som é muito completo, um dos últimos que escrevi. É uma espécie de puzzle. E é também intergeracional, é o meu avô que interage comigo nesta música. Transmitiu-me muita coisa, levava-me à escola… foi como um pai para mim. Quis dedicar uma música ao meu filho, mas no início fiquei um pouco de pé atrás: sabes, "a música do rapper dedicada ao filhote" é um pouco standard e não gosto de choradeiras; no entanto, sei a capacidade que tenho em emocionar as pessoas porque sou uma pessoa sensível, que se despe quando canta. É uma música um pouco diferente das outras: também me conto. Não lhe estou a dizer "sabes, o papá ama-te" e essas coisas, mas "sabes, o papá chegou a uma fase em que era quase um morto-vivo". Este sistema, esta corrida, esta competição…sou um artista e acabei por frequentar um meio mais industrial, onde reina a lei da quantidade. É a grande razão da crise do mundo moderno. Obrigam-te a fazer sair discos, a seguir as tendências e a estar presente em todo o lado. Foi uma das razões pelas quais abandonei os Less du Neuf e foi também por isso que fiz apenas 11 músicas e um álbum de 45 minutos, sem featurings. Quis privilegiar certas coisas.

BC: "Fica a saber" é A música que faltava no panorama musical português. Uma espécie de revolta contra os preconceitos que os portugueses têm dos emigrantes. Sentimos que não te controlas e que não pensaste muito antes de a escrever… que tudo te veio naturalmente…
KV: Foi Royalistick quem me inspirou nesta música. O DJ Lusitano contactou-me e disse-me que ele estava a preparar uma reedição do álbum e à procura de featurings. Fez-me ouvir a música "Tu Sabes" e a partir daí escrevi este som. E ainda por cima tinha acabado de regressar de umas férias que não tinham corrido nada bem, por causa da minha própria família e também de algumas atitudes que os portugueses mais no geral tiveram com a minha mulher que não é portuguesa. Por vezes os portugueses não são muito acolhedores… sente-se esse desprezo, este sentimento de inferioridade que tentam inverter. Mas tudo é relativo. Sinto-me muito bem quando estou em Portugal, talvez melhor que aqueles emigrantes que dizem que Portugal é a melhor coisa no mundo. Tenho amigos lá e calafrios cada vez que ouço o hino português, mas também tenho uma capacidade tremenda em adaptar-me a outras culturas. Gosto de aqui estar, em França, e gostava que os franceses fossem mais patriotas, gostava de transmitir o patriotismo português que tenho aos franceses. Não é ser xenófobo dizer isto: é defender-se, unir-se perante o poder dos ricos, do dinheiro.

BC: Também falas do endividamento dos portugueses, mas não dos bancos que os ajudaram a cair neste abismo…
KV: É evidente que hoje em dia estou mais que solidário com a situação difícil que estão a viver os portugueses. Mas também a estão a viver porque foram um pouco ignorantes, tentados pelo materialismo e não se serviram do exemplo dos portugueses de França que pensam que são os maiores. Aqueles que têm altos carros e polos da Lacoste. Existes porque tens um carro bom? Numa só geração perderam-se todos os valores porque o dinheiro, os cheques em branco e o crédito chegaram. E em Portugal querem Salazar de novo! E isto agora entre nós… aquela história dos Capitães de Abril parece-me mal contada: a CIA deve estar por detrás disto tudo (risos). Eu agora questiono-me sobre tudo, vês? E agora vão-me acusar de ser um nostálgico de Salazar… é sempre o mesmo anátema!

BC: "Tonton du café du commerce (recueil hérétique)"… Porquê ter posto "recueil hérétique" entre parênteses?
KV: Porque sabia aquilo que eu estava a fazer. Que ao escrever isto estava a apoiar gente que não se deve frequentar como o Dieudonné, o Kémi Séba (militante panafricano), o doutor Salim Laïbi, Alain Soral…

BC: Quem não conhecer as tuas opiniões não vai pensar que é apenas humor negro?
KV: Talvez, porque também o há. Estou na minha arte, não num discurso para ser eleito. Há humor negro, raiva de um cidadão que se reinforma, auto-ironia, homenagens, segundos sentidos, provocação… Fiz um apanhado de tudo aquilo que não se pode dizer. Homenageei Céline, fiz pouco do antirracismo pilotado pelo sionismo, do nosso regime democrático e da sua ilusão da liberdade de escolha… Quis cuspir na lei Gayssot de 13 de Julho de 1990 e lembrar que a ciência humana que é a pesquisa histórica é por essência revisionista, senão é a propaganda dos vencedores, talvez o famoso dever de memória seletiva (risos). Fiz tudo isto de propósito, revoltado, mas com o sorriso nos lábios.

BC: A tua imagem do rap português?
KV: A estética americana não me toca. Não gosto daqueles tiques de linguagem "nigga",etc… Sei que no ghetto cria-se um calão, mas não precisam de se americanizar. Até porque o que eu gosto no rap é quando ele está inserido na realidade local.
Mesmo que eu próprio tenha usado alguns beats de estilo mais americano em duas músicas, tirando isso, também passei bons momentos com Chullage, quando fizemos a canção "Unidade" e quando fomos convidados pelos Nigga Poison. Artistas de talento e consciência.


BC: Já sofreste alguma discriminação no rap por seres português?
KV: Nos primeiros anos, senti alguma coisa, mas não por ser português: mais por ser branco. Nunca quis ser um "duro", sempre fui sorridente, simples. Mas quando saía do palco, vinham ter comigo e diziam: "Tens nível nigga"(risos). E também foi bom eu ser branco: dava-me ainda mais força e raiva para ser melhor.

BC: O que resta da visão que tinhas da "integração à francesa"?
KV: Algumas anedotas. Quando eu estava no sétimo ano por exemplo, numa turma em que éramos apenas quatro portugueses e o resto era tudo francês, os quatro a quem fizeram a proposta para "o certificado de estudo" fomos nós. E quando tinha 19 anos, em 94-95, em que a polícia mandou-me parar e ameaçou-me porque eu estava "em situação irregular" e que me podiam expulsar por isso.

BC: Uma frase marcou-me muito em "L’Etranger", quando ainda estavas nos Less du Neuf: "mas aqui não é o terceiro-mundo porque somos brancos".
KV: No início dos antes 80...eu nunca vivi na miséria mas ela estava à minha volta. Vi coisas que não entendi na altura. Perdi um amigo de escola, em 88, quando estava em França. Isso marcou-me muito. Tinha 16 anos e queria sapatos para o Natal, foi aos pinhões e caiu. Hemorragia interna. Estas coisas fazem-te ver a vida de uma perspetiva diferente. Sempre fiz questão de me comportar como um grande, até no rap. Sempre me esforcei para ser sério e atingir os meus objetivos, e isso devo-o aos meus pais. Eles pensavam que eu era louco, até ganhar imenso dinheiro ao participar na BO do "Taxi 2" (risos).



https://soundcloud.com/kimto-ribeiro-vasquez
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Mickaël C. de Oliveira




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