sábado, 26 de janeiro de 2013

SUPERNADA - Centro Cultural de Ílhavo


O medo é o princípio da coragem, mas tu não sabes puta nenhuma, tu não sabes puta nenhuma, tu não sabes puta nenhuma; tudo na nossa mente é espuma.”

Falar-se concretamente acerca do que quer que seja onde esteja patenteado o selo de Manel Cruz é um exercício de fuga à razão: é impossível não nos deixarmos fundir com a carismática veia poética salivada aguçadamente pelo génio criativo portuense e criarmos uma perspectiva mais pessoal e íntima, saída bem lá de dentro, de tudo o que sofre o toque do artista, e enfatize-se o conceito artista. Todas as palavras que se debitem acerca das músicas fermentadas por Manel Cruz não passam de ilusões que nem sequer têm esqueleto, quanto mais corpo; não passam de espuma.

A espuma voa, sentindo vento, e espalha-se por aqui e por acolá, deixando os seus vestígios desprovidos de corpo e sensíveis ao toque. Ontem, os ventos apontavam para Ílhavo, terra afamada pela tradição da pesca no bacalhau, e a espuma alastrou-se por toda a cidade; ou então talvez não, porque o concerto não foi ao ar livre, foi sim fechado a quatro paredes, num Centro Cultural de Ílhavo algo despido. Passavam alguns minutos da hora prevista para o início do espetáculo, quando ainda se esperava pela chegada ao palco da banda que em 2012 fecundou e pariu, finalmente, o seu primeiro álbum, intitulado Nada É Possível, após ter completado dez anos de vida.

Estava tudo a postos, e eu ali todo animado por ter conseguido fintar a organização do evento, que me tinha atribuído o último lugar da fronteira Ílhavo-Verdemilho para assistir ao concerto, e arranjado ali um lugar na segunda fila. O apagar das luzes espalhou o vazio sonoro pela moldura humana que preenchia a sala com capacidade para muitas pessoas, mas que, por motivos que vão-se lá entender, estava só composta por metade dessas muitas pessoas. O silêncio foi abruptamente interrompido pela chegada ao palco dos Supernada e do seu incontornável líder e frontman Manel Cruz, aquele que iria ser, inevitavelmente, o grande protagonista da noite para muitos dos iriam presenciar o concerto. 

Os personagens principais da noite lá nos deram com um “Boa Noite!”, mas, sem muitas mais falas ou demoras, rapidamente se lançaram à vasta panóplia instrumental que se encontrava instalada no palco. O primeiro conjunto de canções a ser tocado revelou-se algo sem vida e desprovido do barulho a que algumas malhas de Nada É Possível nos salpicou. Foi um início pouco intenso, ou menos intenso do que esperava, mas que radicava consigo uma promessa: a promessa do experimentalismo que habita incondicionalmente a música dos Supernada. A promessa só se veio a cumprir mais tarde, e até lá tocaram-se temas como Quando Tu Me Entregas, Nada De Deus, Ovo de Silêncio ou Passar à Volta.

Aclimada a plateia à sonoridade da banda, era tempo de começar a usar e abusar das baterias, com batidas completamente improvisadas e aleatórias, da guitarra vívida que, de vez em quando, despertava um som que acordava qualquer um, de uma linha-de-baixo que se revelava meramente atmosférica mas que assumia uma importância extrema e de umas teclas saltitantes meneadas sapientemente pelo backing vocal e teclista da banda. Enquanto isso, Manel Cruz desmembrava-se e voltava-se a compor num ápice durante um processo que durou todo o concerto e em que manobrava a sua vasta armadura instrumental que envergava: ora pelas percussões ora pelos efeitos que fermentava junto dos seus dois microfones, ora munido pelo seu megafone e pelos seus vastos sintetizadores ora soltando o bicho de palco que há em si, Manel era o homem que mais se sentia na sala.

A promessa começou-se a cumprir com Espuma. Seguiram-se-lhe Manhã de Cinzas, Estética da Ética, Isto Não É Nada e Lábios Morrem Quentes. E foi a partir daqui que o nível de qualidade do concerto despertou: chegava, então, Perigo de Explosão. A partir daqui foram somente tocadas músicas do único longa-duração da banda, contrariamente ao que tínhamos assistido até aqui; com algumas músicas a serem tocas “pela primeira vez na terceira vez”. Houve Animais à Solta, com muito rock à mistura, que se iam revelando endiabrados pela prolongação que se deu à faixa; existiram as Letras Loucas afinadamente cuspidas pela mestria poética diluída na avalanche sanguínea que corre pelas veias bem salientadas no pescoço de Manel Cruz quando este debita as suas retóricas que nos conseguem aprisionar como um bom thriller da década de 90. Houve ainda O Meu Livro, Pai Natal e Sonho de Pedra.

O concerto avançava para a sua recta final, recta, essa, esboçada pelas palavras do líder da banda “Pronto, malta: esta é a última. Vamos acabar com uma música das mais velhinhas.”: o fruto das suas palavras foi um dos maiores malhões de Nada É Possível, a Anedota que todos queríamos ouvir. Não foi uma anedota propícia para provar a gargalhada colectiva, mas a sua pujança instrumental, claramente a música mais rock do álbum de estreia da banda, coabita com uma passagem que teima em se desnudar do ouvido quando a escutamos: “A minha vida vai ficando mais curta e o meu desejo está sempre a mudar. Acorda, mulher.”. Não sabemos se a mulher acordou ou não, mas o que realmente acordou e despertou depois de ouvir Anedota foi a nossa vontade em ouvir mais. Porém, tardiamente, pois a banda já se despedia sob uma tremenda chuvada de palmas.

Contudo, o jogo de luzes anunciava o encore. Volvidos alguns minutos, os Supernada regressavam: durante o encore, foi possível fazer uma viagem cronológica pela banda até aos seus tempos mais primórdios; foi possível estrelar, fazendo-a cintilar como se estivéssemos em 2005, a tão adormecida Nova Estrela; foi possível superar o momento que Anedota nos proporcionou, navegando no Invisível Mundo da banda do norte. As despedidas finais deram-se com as novas (?) Sol Vermelho e Tudo Importa e com a timedez dos mais pequenos a ceder ao talento, omnipresença e carácter inconfundível de Manel Cruz e a correrem para o palco pedindo-lhe um autógrafo ou uma fotografia conjunta.


No fim, ficaram várias certezas; uma delas é que se gostam de Nada É Possível, esqueçam e parem tudo: ao vivo é infinitamente melhor. Sabe bem servirem-nos tanta experimentação, tanta ousadia melódica e tantos ruídos de fundos a consumirem-nos através da armadura infindável com que os Supernada se munem para criar, fermentar e complanar a sua música. Sabe bem ouvir aquele som tão cru, sujo e turvo. Sabe muita coisa bem, mas nada melhor do que provar o travo luculento da figura já inolvidável da música alternativa portuguesa que é Manel Cruz: um músico multifacetado que se exila num munto poético persuasivo e intrigante e que aloja nos seus lirismos briosos a experimentação sonora aliada à pop e ao rock como poucos o fazem ou fizeram. Ontem viu-se o melhor de Manel, bem ao seu estilo emblemático: tronco nu, corpo bem regado pelo seu suor, que também lhe vai percorrendo o rosto, de altifalante na mão. O resto… o resto só cada um de nós saberá: é a tal história da espuma, lembram-se?

 

(PS: Esqueçam as comparações de Ornatos Violeta com Supernada, não tem nada a ver)

Fotografias pelo irremediavelmente grande e sublime Afonso Ré Lau, texto por um ser qualquer.

Aproveito este tempo de antena, também, para fazer agradecimentos ao Mantino Costa e ao José Duarte Pereira por alguns motivos. Aproveito, também, para agradecer à minha família por me aturar, e à minha mãe por me ter dado à luz e não ter percebido logo na ecografia que eu era suficientemente feio ao ponto de tornar o (meu) aborto plausível. 

4.69281estrelas/5

Emanuel Graça




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