Oriundo da
cena doom de Setúbal, Ricardo Remédio
lançou o EP Rancor, que mistura as
suas antigas influências, de quando era teclista nos Löbo, com música
eletrónica ; um rumo que quis definitivamente adotar no seu novo projeto
RA – Rei Abutre. Negro, este EP ajuda a conhecermo-nos melhor, realçando a
parte mais sombria de cada um de nós. Desse modo, a análise das quatro músicas
que compõem Rancor assemelha-se a um
acompanhamento de um filme de terror, aéreo e lírico na negrura, com o objetivo
de expulsar de nós a parte desconhecida, ou melhor, aquela que não queremos ver
e que deixamos ao julgamento dos outros.
O(s) Cobarde(s) ou aqueles que não ousam ouvir. O(s) Cobarde(s) ou aqueles que não aceitam o inferno. O(s) Cobarde(s) ou aqueles que não se
ouvem a eles próprios. O(s) Cobarde(s) ou
aqueles que simplesmente não (se) aceitam.
Envolvido na
atmosfera assombrada dos primeiros instantes do álbum Rancor, sinto-me logo atacado : a angústia que sinto não será
apenas a que eu tenho em mim ? Magoado na minha autoestima, encho o peito
e sigo em frente, sem medo. Atravesso as fronteiras sombrias semeadas de
urtigas enegrecidas, procuro enfrentar o meu mau-estar avançando e mostrando-me
a ele, rodeado de vozes fantasmagóricas e de uivos de lobos permanentes. Até à
minha salvação: a esperança mesclada aos primeiros sons de teclado,
lentos, aéreos, planantes. Acolhido desse modo, acredito que me tenham aceite antes
mesmo de eu ter decidido entregar-me. E se me aceitam, também me aceitei.
Mas o tempo
é ainda de reflexão. Contemplam-se visões opostas, desafiam-se, tentam perceber-se,
encontrar uma semelhança. Tudo se torna mais melancólico numa quase dark wave
que não se quer apagar. E a música acaba.
A lentidão
do Rancor assemelha-se ao percurso
sinuoso que me é oferecido pelo artista. Não é fácil alcançar-me, não é fácil
alcançá-lo. Como dois corpos que se conhecem ainda há pouco, os primeiros
toques são subtis, mesmo que a ousadia ganhe em força ao longo do tempo. Quanto
mais ele passa mais ganho confiança e me deixo levar pelo ritmo que se torna
então mais completo, acelerado. A batida ganha cor na negrura, e tudo se
embala. Preparo-me a sofrer as consequências da minha pouca abertura mas
espero, firme, com as certezas de cair em boas mãos. Tudo isto para um castigo
que nunca mais chega, que nunca vai chegar. Aí, o meu Rancor torna-se superior ao do artista : queria aquele último
golpe fatal. Queria o meu próprio sofrimento.
Mas o que
vale a confiança nos tempos que correm ? A Paz Podre, declarada aos poucos, e o lado habitado que emerge e me
testa de novo. A angústia, lobos, o medo, uivos, o negro, fantasmas. Em pleno No Man’s Land, esta música define a
efemeridade do nosso estado, entre a entrega total e a reflexão.
Em O Inferno são os outros, a batida é mais
forte, sinal de despedida fúnebre. Procura-se o ângulo de ataque, o ponto
fraco, entremeiam-se alguns sons mais dubstep,
já não existem gentilezas, ataca-se com os sons mais saturados e fortes
possíveis, destrói-se por completo o ouvido do ouvinte, mistura-se o sonho ao
pesadelo, a vida à morte, no fundo tudo é o mesmo. O velório pode acabar sem
nunca termos ido, a marcha fúnebre desafina. O Inferno são os outros, aqueles que nós somos, o reflexo da parte
de nós que nos assusta, que nos destrói, seleciona, põe à parte.
No meio de
tanta sensação confusa, pouco importa se estamos vivos
ou mortos, o importante é ter estado, ter ouvido este álbum, um hino à confusão
dos sentimentos. E como diria Jean-Paul Sartre de quem se inspira Ricardo
Remédio no último som : « Há
uma quantidade de gente no mundo que está no inferno porque depende em demasia
do julgamento do outro. » Resta saber se a música do RA não é uma
espécie de catarse que nos permite também entender-nos a nós próprios.
Mickaël C. de Oliveira
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