sábado, 12 de maio de 2012

À Sombra de Deus 4 - Braga 2012


À sombra de Deus é uma colectânea musical que pretende preservar o legado cultural da juventude do império bracarense. Encabeçada pela figura incontornável de Aníbal Luxúria Canibal, vocalista dos consagrados Mão Morta, e por Miguel Pedro, é agora que nos chega a sua quarta edição.

Dividida em duas partes, esta selecção musical é cimentada pela sua riqueza e diversidade. De facto, quando o ouvinte escuta esta À sombra de Deus 4 – Braga 2012 compele-se a deambular por rumos completamente diferentes a cada música. Desde os momentos mais calmos, polidos pelas tonalidades mais suaves e aromatizado pelos odores mais harmoniosos, até aos momentos mais intrigantes, onde tudo parece estar incôndito e em desordem, somos constantemente penetrados pela ousadia desta compilação.

Devido às diferentes bandas que compõem esta selecção, não é possível categorizar o estilo musical com que esta foi arquitectada. Desde o estilo rock «à maneira antiga» patenteado na enérgica Soul do rock, dos Balão de Ferro, à brincadeira com o R&B feita por parte dos Dead Men Talking na agradável e esplendorosa Absolution of time, torna-se impossível categorizar o registo num único estilo musical, dando somente a certeza de que a tarefa de agradar a um maior número de pessoas fica, seguramente, mais facilitada, o que, em meu ver, é um dos pontos dignos de realce do registo.

Focando-me nos pontos que mais me surpreenderam nesta obra, devo debruçar-me sobre cinco nomes: Dead Men Talking, The 1969 Revolutionary Orgy, Cavalheiro, At Freddy’s House e Tatsmuaki.
Os Dead Men Talking, formados em 2005, são compostos por um quarteto e apresentam-nos, nesta obra, a sua magnífica Absolution of time. Brincando com os princípios básicos do R&B e radicando-se num vincado smooth electro, vão articulando uma voz, a cabo de Carlos Silva, sempre muito peculiar com uma instrumentalidade desiniba e ousada, embriagada pela sapiência com que Márcio Alfama, teclista, solta os seus dedos para mandingar o ouvinte. É de se referir que quando escutei a sonoridade produzida por estes bracarenses chegou-me à memória toda a genialidade de The Weeknd, por exemplo. De facto, fica aqui complanado que este quarteto bracarense tem muito para nos poder oferecer, muito para além do seu primeiro EP intitulado Underworld.
The 1969 Revolutionary Orgy espelham ousadia, não só pelo seu nome como também pela sua música. Querendo reinventar os 70’s, apresentam-se como um grupo de rock and roll puro, com ideais que se deambulam pelo aternative característico já dos 00’s. Apelativos, conseguem criar uma fusão bastante agradável entre a vertente instrumental, vocal e lírica, sempre sem grandes falhas e numa sincronia que consegue prender o ouvinte a cada instante, como ficou patente em Time for living. O quinteto, formado em 2008, conta, até ao momento, com o lançamento de um único EP intitulado Artwork Bootleg Live EP, e prova, nesta coletânea, que pode subir a fasquia e experimentar-se na rodagem dos LP’s. Nós agradecíamos.

Cavalheiro foi uma admirável surpresa, até porque cantam no dialeto Camoniano. Debruçando-se sobre lirismos estupendos, revestem a ouro uma sonoridade calma, domada por uma guitarra interventiva e por uma bateria que acaba por acatar um papel atmosférico muito importante. Com pequenos toques instrumentais acabam por lembrar o pesar do prog rock e criar uma simbiose bastante graciosa entre uma voz que combure e aconchega incessantemente o ouvinte. Em compêndio, exsurgem-se com uma das grandes surpresas da obra. Bom Jesus é, indubitavelmente, um dos pontos altos do registo e anseio por poder ouvir mais deste quarteto formado em 2009 e que conta já com o lançamento de três EP’s.

At Freddy’s House aprece-nos com a profunda Written in blood. Numa paisagem calma e triste, onde tudo parece ser incompto e se esquivar da alegria, chega-nos uma voz com um timbre muito peculiar. Somos concitados por pequenos traços dos 90’s, mas são uns traços que já perderam alguma fervura e que agora vão arrefecendo a um ritmo lento. A vertente vocal, roca, cria uma simbiose bastante interessante com uma guitarra mais calma que o habitual, num ritmo abrandado, a passa de caracol, o que cria, ao longo de todo o arrojo, momentos de pequeno suspense. Written in blood fez-me lembrar, entre outros, nomes como os britânicos Bush, o que me agrada bastante. Fred está para as curvas e espera-se pelo lançamento de um segundo álbum, tendo sido o primeiro, Look Full Version, lançado em 2010.

Outro dos nomes que mais captou a minha atenção foi Tatsumaki. Tatsmaki é nome que se esconde por detrás de Marco Pereira, um homem que se desdobra incansavelmente entre os teclados, sintetizadores, caixa de ritmos e a voz. Apoiando-se no seu estro rítmico, Dream Drive é daquelas canções que fazem água na boca ao ouvinte, tal é a vontade com que ficamos de ouvir mais acerca do multifacetado Tatsumaki. Apetrechando a sua sonoridade pela componente eletrónica, dá a sensação de que se escondem inúmeras pessoas por detrás da música que nos chega aos ouvidos, tal é a sapiência e destreza de Marco para manusear cada instrumento. Fica a sensação que, apesar de se tratar de um estilo musical que é bastante alternative, este é um dos nomes que pode muito bem invadir as massas. Esperemos que sim, porque o talento, esse, é imenso e merece reconhecimento.

Além dos nomes que mais me surpreenderam, existem também aqueles que, apesar de não serem nenhuma surpresa, acabam por conferir a este À sombra de Deus outro patamar e outra visibilidade. Falamos, claro, dos Mão Morta, Peixe-Avião, Mundo Cão, Long Way To Alaska ou, até mesmo, Balão de Ferro.

Mão Morta apresentam-nos A ver o mar e dispensam comentários. Sempre enormes, ao leme da genialidade da figura quase épica de Aníbal Luxúria Canibal, o «mentor» de todo este projecto, cessam toda a sua fome junto da sua música. Peixe-Avião estão cada vez mais a cimentar a sua figura na poltrona da música alternativa portuguesa. Cantam-nos Voltas Cegas, rematando um momento que incrassa a qualidade de todo este registo. Mundo Cão ladram-nos as suas crenças com Meu Deus! e provam-nos que não querem desdourar tão cedo, nem que se deixam combalir pelos seus já 10 anos de carreira. Long Way to Alaska, banda que se está a cimentar no panorama alternativo nacional, cantam-nos, no dialeto de Shakespeare, Yonder Year, uma música com uma sonoridade indie pop, que agradará, seguramente, a todos os ouvintes. Balão de Ferro, o nome menos consagrado dos que acima referi, fazem-nos voar sob uma atmosfera domada pelo espírito rock, onde todas as camadas gasosas parecem querer soltar ao seu som. Eles são do rock, não do pop, fazem a estrada levantar pó e não têm dó. Julgo estar tudo disto acerca do trio formado em 2010.
Além de todos os nomes acima referidos, o registo ainda conta com mais nomes. Anguria é uma surpresa agradável que nos aparece com Necrologia que, contando com uma voz feminina bastante sensual, promete não querer largar os tímpanos do ouvinte durante o misterioso verso «Contar-te com rigor». De referir o solo final, que é bastante bom.
A música «boa onda» dos Monstro Mau ou dos Smix Smox Smux também não deve deixar de ser referida, e prometem transmitir boas vibrações a todos os ouvintes. Atenção, também, para os Egg Box que produzem uma mistura musical bastante interessante, fazendo-me lembrar bandas como, por exemplo, Radiohead ou The Rapture.

Contudo, À sombra de Deus deambula-se por rumos mais incertos, misteriosos e latebrosos quando nos aparecem nomes como Spitting Red, Vai-te Foder, Nyx, Estilhaços, Ermo, Astroboy, Palmer Eldritch ou Hunted Scriptum. Hunted Scriptum parecem querer concutir o nosso cérebro com uma música metal poderosíssima alicerçada em berros desalmados que nos pretendem combalir a cada vocativo que é expelido pelo vocalista, Sérgio Ferreira. Spitting Red berram-nos Inception Delay num arrojo instrumental absolutamente divinal. Num cenário cenoso querem penetrar a nossa mente, não pretendendo deixar ninguém incólume. Nyx e Ermo primam pela misteriosidade com que conseguem musicar as suas ideias, o que resulta numa espécie de catalisador para que o ouvinte ouça, sinta e imagine a música. Palmer Eldritch e Astroboy musicam pequenas obras de arte que se radicam em futurismos sónicos penetrantes e viscerais, capazes de levitar durante horas na nossa cabeça. 
Estilhaços musicam, em À sombra de Deus, Nevoeiro. Tal e qual o seu significado, só sabemos, quando está nevoeiro, o que está à nossa frente quando damos um passo em frente. O cenário, aqui, é o mesmo. Envolta de misteriosidade, onde tudo tarda em se clarificar, num poema declamado por uma voz que nos soa lapuz e que nos eleva para rumos inóspitos, Nevoeiro é um belo exercício de imaginação feito pelos Estilhaços. O outro nome deste leque que falta referir são os «pesados» Vai-te Foder, que edificam, em Nascido Para Odiar, uma autêntica ode ao mosh, tal é a explosão e overdose de emoções que eles catalisam. Outro dos pontos de realce deste registo é que este conta com a participação do conceituado poeta bracarense Valter Hugo Mãe e do seu Governo. Cantam Saudades de Sebastião, numa excelsa composição lírica, não fosse Hugo Mãe o seu escritor.
Em compêndio, À sombra de Deus preserva (e de que maneira!) todo o talento bruto que existe pela cidade Bracarense. Adolfo Luxúria Canibal e Miguel Pedro estarão, por certo, bastante orgulhosos desta playlist que elaboraram pela quarta vez e que cimenta o império bracarense como uma fonte de boa música, diversidade e, acima de tudo, de riqueza cultural. Com tanta diversidade, são-nos baralhados todos os sentidos, o que é estupendo. No seio de uma overdose de sentimentos, fruto de escutar este registo por duas ocasiões consecutivas, recomendo que vos deixem mandingar pelos feitiços deste Deus.

Emanuel Graça




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