quinta-feira, 31 de maio de 2012

Adolfo Luxúria Canibal - ENTREVISTA

O BandCom esteve no café A Brasileira, em Braga, em conversa com Adolfo Luxúria Canibal sobre as ‘pérolas musicais’ que a cidade acolhe. O projecto de monitorização da música que se faz na cidade de Braga dá-se pelo nome de “À Sombra de Deus” e já vai na 4.ª edição.

Este À Sombra de Deus também poderia chamar-se A Música Bracarense A Gostar
Dela Própria?
Também. Acho que é, efetivamente, música bracarense; é um espelho do que se faz em Braga e, dada a sua qualidade, acho que toda a gente vai sentir orgulho de ter participado neste disco.

Braga tem uma herança muito ligada à religião. É daí que vem o nome da colectânea?
É. A imagem de Braga é muito ligada à religião mas, para além desta imagem principal, há muitas outras coisas que se passam à sua sombra: uma delas ligada à música.

O que há em comum nas várias edições do À Sombra de Deus?
O comum é sempre a mesma coisa: documentar a música que se faz em Braga no ano em que o disco sai. Esta [coletânea] tem a particularidade de remeter, quase como o fechar de um ciclo, para a primeira, porque a primeira correspondeu ao som que se fazia num grande apogeu criativo de Braga: os anos 80, que ficaram para a história como o grande
momento musical da cidade. Este volume 4, este Braga 2012, corresponde a um novo apogeu da música em Braga, que se traduz não só na quantidade de grupos em disco (são 23), mas também na qualidade. Os outros dois volumes corresponderam a uma época mais de estagnação criativa na cidade, sobretudo o 2. O volume 3 dava a ideia de que alguma
coisa já começava a surgir nas sombras das sombras. Portanto, o objectivo mantém-se: guardar as pérolas de um dado momento da cena musical bracarense.

Mas esse momento: como é que ele é escolhido?
É um bocado aleatório, porque depende da disponibilidade financeira que vai encontrando. A Câmara Municipal de Braga é a grande financiadora desta monitorização de música da cidade, mas depende muito do interveniente que está, na altura, a gerir os dinheiros para a cultura e depende muito dos acontecimentos. Este ano, por exemplo, aconteceu porque era a Capital Europeia da Juventude. Portanto era uma coisa que se proporcionava e que havia, de alguma forma, alguma disponibilidade financeira; mas podia ter acontecido perfeitamente desde 2006, quando abriram as salas de ensaio no Estádio 1.º de Maio. 
As salas de ensaio contribuem para esse momento de riqueza musical que se vive actualmente?
Contribuem. Criam um sentimento de pertença, um colectivo. Com tudo o que isso traz de positivo: as pessoas olham-se umas às outras, competem de uma forma salutar umas com as outras, aprendem umas com as outras, criam novos músicos (os peixe:avião são o exemplo mais flagrante. São um grupo que foi criado a partir das salas de ensaio com pessoas que não se conheciam até então). Portanto há toda uma riqueza de intercâmbio de ideias, de modos de fazer, que contribui para que a fasquia suba.

“A quantidade e qualidade ultrapassam, de longe, o 1.º volume. E estou a falar do
1.º porque é um volume de referência, aquele que ficou na história (está nos 10
melhores discos do anos anos 80 para a Blitz)”

Se Braga não fosse a capital europeia da juventude e se a autarquia não tivesse disponibilizado essas tais salas de ensaio, quantos mais anos teria de se esperar por uma nova edição do À Sombra de Deus?
Não faço ideia, mas a probabilidade de ser este ano ficaria reduzida a nada, acho eu. Porque nós já o tentámos editar em 2010 e 2011 e não conseguimos.

Para além desse momento que é escolhido quase de uma forma aleatória, como se processa a selecção das bandas e dos temas? 
Os temas as bandas é que escolhem. A participação é livre nesse sentido. Depois, tentamos que estejam representadas todas as bandas dentro desta área que podemos chamar de “a música moderna portuguesa” e que tenham tido actividade notória recente.
Uma das bandas, os Nyx, foi formada no final de 2011, e tem um currículo muito simples: 5/6 concertos no Mosteiro de Tibães, mas com a sala esgotada. E as pessoas que foram assistir gostaram e comentaram. Portanto, era [uma banda] importante. É o suficiente para estarem presentes. Há bandas [como os] Long Way to Alaska que tiveram pouca actividade em 2011, mas [a] que tiveram foi extraordinariamente marcante. Passaram a
ser uma referência da música da cidade. Uma coletânea que quisesse retratar a música da
cidade e não [os] incluísse era uma coletânea falhada.

Mas, em retrospectiva, ficou alguém de fora?
Com atividade, todas as bandas que foram convidadas aceitaram. Portanto, não me lembro de nenhuma banda que tenha ficado de fora.

As bandas podem auto-convidar-se?
Sim. Quando começámos a fazer os convites houve uma banda - que eu nem sequer sabia da existência –, que manifestou interesse em participar. Pedi-lhes o currículo, e eles enviaram tudo o que tinham e mais alguma coisa. Falo dos Dead Men Talking.

“Há uma evolução no domínio dos instrumentos e no domínio da composição”

Para além de todas as funções que a colectânea tem para a cidade, também existe essa função de acompanhar o nascimento e a morte de algumas bandas?
Para quem conheça. Essa função narrativa é mais obscura para quem é de fora da cidade e para quem não está ligado ao meio. Mas para quem conheça e tenha os quatro discos do À Sombra de Deus consegue fazer essa narrativa das bandas e das pessoas e de quando é que elas surgiram. Porque muitas delas surgiram a público nos À Sombra de Deus.
Ouvindo os 4 álbuns seguidos o que se pode concluir sobre a evolução e sobre as tendências musicais actuais?
Acho que se pode concluir muita coisa e depende muito do ouvinte. Mas há uma coisa que é notória para toda a gente: a grande evolução a nível técnico. Apesar de o 1.º disco ter sido gravado em Lisboa, num estúdio reputado, e de o 2.º ter sido gravado já em Braga, mas num estúdio caseiro, há, ainda assim, uma evolução, que tem a ver com a evolução do analógico para o digital mas, sobretudo, da facilidade com que se grava no digital.
Este 4.º disco é engraçado porque não há qualquer diferenciação entre as bandas: as cheias de experiência, as bandas com mais ou menos experiência e as novinhas. Há uma e outra banda novinha e, ainda que se note ali ‘arestas a limar’, o grosso dos grupos já tem uma consistência de composição e de som e de domínio técnico do instrumento que é de uma pessoa ficar ‘abananada’: como é que se evoluiu tanto nos planos todos? Neste momento, uma pessoa ouvindo o disco fica pasmada: como é que está tão homogéneo,
com uma fasquia tão elevada independentemente dos estilos e das idades das bandas? Mais
do que os estilos, é o saber. E às vezes o saber tem muito a ver com a experiência, mas aqui a experiência não conta nada. (sorriso) Porque todas as bandas, mesmo as inexperientes, atingiram um patamar altíssimo.
O 1.º álbum contou com 8 temas; o de 94 tinha 10 temas e o de 2004 14. Este tem
23 temas de bandas diferentes. Pode-se concluir que a música é à prova de crise a
partir daqui?
(Sorriso) A crise ainda não fez os seus efeitos na música e espero que não faça. Mas os 23 que há em Braga neste momento, porventura mais, não surgiram com a crise. Ainda sobrevivem apesar da crise. Não sei como é que será daqui a 5 anos, se a crise já terá ‘mandado alguém ao charco’. Espero que não.

“Na colectânea estão 69 músicos diferentes”

Eu falava no crescimento do número de bandas em disco. Porque das duas uma: ou os critérios de selecção se abriram ou…
Não não, os critérios mantêm-se. Têm sido sensivelmente os mesmos. O número de bandas
realmente aumentou exponencialmente. E, sobretudo, do volume 3 para o volume 4 o aumento foi quase para o dobro. No início dos anos 80, sentia-se uma grande movimentação e uma grande algazarra à volta da música e das outras artes, mas o núcleo era formado por meia dúzia de pessoas. Era uma coisa restrita, alargada mas restrita. Depois ficou dispersa mas com muito mais gente interveniente e esse “muito mais gente” foi sempre aumentando até chegarmos ao estado em que estamos: em que [na colectânea] são pessoas estritamente ligadas à música - são excepções aquelas pessoas que praticam qualquer outro tipo de arte -, mas na colectânea estão 69 músicos diferentes. Não tem nada a ver com o que era nos anos 80.

O público terá de esperar mais uma década por um próximo À Sombra de Deus?
O À Sombra de Deus transformou-se numa monitorização da música de Braga. E uma
monitorização para ser bem-feita devia ter um período regular, independentemente dos
momentos altos e baixos por que a cidade passa musicalmente. E eu penso que, para uma
monitorização musical deste género, 5 anos seria o ideal. Infelizmente, apesar de já ser uma monitorização, não é uma monitorização tão regular assim. Mas pelo menos as décadas – a década de 80, a década de 90, a década 0 e a década 10 - estão cá todas.
E um festival, um A Música Bracarense A Gostar Dela Própria a partir deste
trabalho?
Um festival implica outras coisas. Eu gosto de coisas que perdurem. Um festival pode ser uma grande festa, e é uma grande festa, mas é uma coisa que, passado um ano, já ninguém se lembra. Poderá lembrar-se, contar histórias e etc, mas já não resta mais nada a não ser essa memória vaga de quem, porventura, a tenha guardado. Um disco é diferente. Hoje podemos escutar o que se fazia em Braga em 88 e comparar com o que se faz em Braga em 2012 de uma forma perfeitamente objectiva. Esta objetividade que fica
num documento, para mim, é bem mais importante do que o fugaz momento de festa.

Tânia Azevedo




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