quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

IV NOITE FETRA & AMIGOS - 27/12/2014 - REPORTAGEM

Apesar do difícil posicionamento no calendário, a 4ª noite/dia da Cafetra Records não seria a oportunidade consensual de meter o espírito natalício na gaveta e avançar para o espírito baderneiro de um novo ano. Aliás, numa Lisboa cada vez mais centralizada no que a espaços de concertos diz respeito, percebe-se que, por estes dias, a localização da Caixa Económica Operária reúna apenas quem tem a genica de abandonar a força do hábito. Mas uma sala tão convidativa e bela merece estar ocupada e a Cafetra, com o mesmo "a" que o poder feminino toma como seu e reclamaria no balanço final, deu-lhe essa luminosidade em troca de derrubar as barreiras de uma normal tarde de Sábado.








Logo a abrir, Francisca Salema ou sallim fez da primeira meia-hora um dos momentos da tarde com a demonstração mais pública de afecto por todos os que se encontravam na sala que é...deixar os mesmos à deriva, aquela em que ouvir cantar sobre um desgosto amoroso soa tão bonito como não o ter. A mesma sequência de momentos em que não correr tudo perfeito é maior que a perfeição em si mesma.
Toda a cenografia por detrás de uma pequena e aparentemente frágil rapariga reproduz-se a partir e para além, como uma voz angelical e uma guitarra preciosamente decorada por alguns efeitos a sobressaírem por cima da pop confessional e intimista tão honesta que quase se agarra à vida. Temas gravados por aí não faltam - até um EP, "dois", que falha por pouco as listas de melhores de 2014 -, difícil é continuar a passar ao lado.

Aparte 100 Leio, Kimo Ameba, os Iguanas e o suporte a Éme (e "n" outras coisas, não falássemos do grupo de amigos antes sequer de haver Cafetra), Lourenço Crespo aparecia de seguida numa das primeiras vezes a tocar a solo. Para já, com apenas um orgão e a postura de um falso/desajeitado organista que não se importa com nada, o B Fachada que visitaria a festa lá mais perto do seu final é, se não uma muito óbvia referência, o artista de dois últimos trabalhos, sobretudo "Criôlo", que oferece a mais óbvia das comparações. Fora isso, já sabemos, e duvidamos em igual medida, que num futuro muito próximo nada disto vai ser verdade.






No anti-ramerrame, na montanha-russa de concertos a alta velocidade da tarde, a estrela óbvia Éme poderia ser o não tão óbvio senhor que se seguiria. A militância despertada com o concerto de Lourenço Crespo e o destaque imprimido às canções simples e brilhantes do mais recente "Último Siso" foram servidos como deve ser, com pouco mais do que uma guitarra acústica e coros a brotar quase de todos os cantos da sala. Para além de crooner da tarde e apresentador/manager de craveira, Francisco Correia, Smiley Face ao microfone, guardou cerca de 20 minutos para, dentro do imaginário teenager do novo/velho milénio e da filosofia cara traduzida para o mundano, o comic relief desgarrado da tarde com uma guitarra, um ukulele e um telemóvel feito caixa de ritmos.
Com o último espectáculo da tarde, abria-se um cenário musicalmente mais denso, pautado e univocalmente instrumental para a noite. Os Go Suck A Fuck com Van Ayres, fazendo do ruído electrónico ambiente de trabalho para detalhe de joalheiro, seriam os primeiros a abrir a porta para a electrónica da Cafetra antes da pausa de jantar.



Como previsto, e continuando a cumprir os horários previstos, era Sara Rafael que corria para demonstrar afincadamente como Jejuno o lado mais obscuro e dolente do trash noise que os Go Suck A Fuck e Van Ayres tinham deixado em aberto ao anoitecer. Drones depurados pelas regras do psicadelismo orquestrado nem-tanto-ao-céu-nem-tanto-à-terra, por batidas desprendidas como as melodias e por referências descoordenadas.
De descontrolo e viagem momentânea e abstracta também vinham o saxofonista Pedro Sousa, o violoncelista Miguel Mira e o baterista Afonso Simões falar logo de seguida cruzando com um crescendo de entusiasmo improvisação e jazzfree-jazz, de construção e desconstrução permanentes e altamente celebradas por todos os presentes que já não distinguiam transe electrónico de sincretismo orgânico.
Em trio inesperado e antes das irmãs Reis, as Putas Bêbedas trocavam as voltas para não "tocar o mesmo disco" antes dos Tropa Macaca. Um festival impressionante de punk-metal corrosivo mas descomprometido a atacar os tímpanos com o estranho sentimentalismo e shoegaze de "Jovem Excelso Happy", LP de estreia a que os elogios de Julian Cope não são, e com razão, estranhos, nem que seja pelo facto de mais uma vez até o que parece imperceptível merece palmas e um headbang furioso.








As Pega Monstro conseguiram crescer: só isto seria um feito digno de nota. A sequência inicial de novas canções, como "Amêndoa Amarga", revela que o mesmo pop-rock lo-fi orgulhosamente cru e suado que lhes conhecemos do disco de estreia homónimo, a que resgataram "Fetra" e "Afta", está apenas a saber lidar com o mesmo síndrome da idade, acumulando e reflorescendo a partir do limar de novas camadas de ritmos, anti-ritmos e filtros de impaciência malsofrida. É como se o segundo disco que está para chegar em breve fosse o melhor disco de sempre não editado - nesta noite foram apenas 30 minutos tão bons e tão cheios que não deram para lhes abafar a timidez com que ainda ensaiaram um encore. Antes dos DJs, os Tropa Macaca deram de barato projecções vídeo abstractas e uma performance musical de série e de mestria a acompanhá-las. Dão-nos narrativas improvisadas que podemos tentar encaixar como tudo o que já aprendemos do ambient noise ou dos Cabaret Voltaire.
Poderia ser assim, por esta ordem, que se descreveria este concerto não fosse o facto de o abstracto e o misterioso ficarem, não apenas poeticamente falando, acima das cabeças de quase todos e de ali à frente estar tudo colado à densidade de texturas de uma fusão entre techno-house industrial primata, agressivo, e guitarradas angulares e exploratórias sem linguagem de catalogação e com todo o propósito e oportunidade para a sua devida apreciação.






Muitos adjectivos já correram pelas linhas que se colam à Cafetra.
Parece ser a última oportunidade de gostarmos, de ouvirmos música da adolescência ou com espírito adolescente, de fazer crescer algo em que se acredita a partir do sangue.
Atacar o tradicionalismo e o "passar por cima" das estruturas convencionais é não pensar seriamente no bem comum que se reconfigura ciclicamente por cima de qualquer realidade, seja a das Olaias ou a da Comporta: por isso, "escolhe o teu veneno, algum vai ter de ser".



Texto de André Gomes de Abreu

Fotografias por Zé Vidal
(galeria completa em
facebook.com/bandcom)




1 comentários:

melô dos pirata disse...

https://www.youtube.com/watch?v=yOOYtKvLMQ4

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