Último dia
do NOS Primavera Sound; não vamos
assumir o cliché de dizer que «guardou-se
o melhor para fim», mas a verdade é que o último dia do evento portuense
foi, segundo a nossa perspectiva, aquele que mais nostalgia albergou consigo.
Primeiramente seria uma oportunidade única para ver nomes como Neutral Milk
Hotel e Slint (banda mais ansiada por este escriba). Segundo, era o dia em que
já carregávamos na alma o peso do adeus a um sítio e a uns tempos em que fomos
mais do que felizes. Num dilúvio de emoções, tudo era simultaneamente bom e
mau.
Às 17:55h lá
estavam os YOU CAN’T WIN, CHARLIE BROWN em
cima do palco NOS para nos fazerem
felizes. É rara a ocasião em que a sua música não nos transporta para paisagens
revestidas de cor e de vida e, por agora, nenhum dos seus dois discos deixou de
cumprir em questões qualitativas. Se a estreia com Chromatic já tinha sido motivo maior para retermos o seu nome bem
presente na nossa cabeça, o recém-editado Diffraction
/ Refraction é, por agora, a sua prova maior do modo como a sua freak folk repleta de sintetizadores faz
corar os nomes que a acabaram por consolidar e massificar enquanto género
musical. A setlist para o espectáculo,
como expectável, deambulou entre os dois discos de originais e trouxe-nos uma
surpresa para o fim: uma versão de “Heroin”, dos lendários The Velvet
Underground. Não será necessário dizer que deram o melhor concerto português
desta edição do NOS Primavera Sound e
que, como esperando, foram a banda lusa com maior aglomerado de pessoas. Além
do óbvio (de que são, indubitavelmente, um dos nomes maiores da actualidade da
música portuguesa), outra conclusão: a sua felicidade contagiante já merecia
outras paragens.
De seguida,
seriam os inesgotáveis resquícios dos Sonic Youth a esvoaçar pelo Parque da
Cidade ao som de LEE RANALDO & THE
DUST. Ao mesmo tempo, HEBRONIX
ia tocando no palco ATP. Já é um dado
adquirido que os Sonic Youth são uma das bandas mais importantes de sempre da
história da música independente (é claro que devem, em grande parte, ao maestro
Glenn Branca) e também já é sabido que o seu fim em nada alterou a essência dos
projectos musicais dos seus fundadores (Thurston Moore com os Chelsea Light Moving,
Lee Ranaldo com os The Dust ou Kim Gordon com os Body/Head vão-se alimentando
do banquete de uma vida – os Sonic Youth). LEE
RANALDO & THE DUST não nos conseguiram trazer outra coisa que não
saudades, que não lamentações pelo fim de uma das maiores bandas de todos os
tempos – o mal está em fazê-lo propositadamente.
Celebrada
por poucos é o que se pode dizer da estreia em Portugal de Daniel Blumberg,
ex-líder dos Yuck, na pele de HEBRONIX.
Entre a concorrência com Lee Ranaldo e com os ecos dos You Can’t Win, Charlie
Brown, o minimalismo folk-avant garde-slowcore
da combinação violino-guitarra altamente manipulada contou com um público
fiel mas reduzido no palco ATP, numa
clara demonstração das diferenças entre os públicos de Barcelona e do Porto e
da pouca penetração das canções de “Unreal” pelas playlists prévias de educação auditiva, que claramente não
preferiram o seguidismo noisy de Jim
O’ Rourke perdido entre desencantos libidinosos, explorado mas não totalmente
concretizado.
Depois da
passagem a solo pelo festival em 2012, Jeff Mangum voltou este ano acompanhado
da sua banda de quase sempre: os NEUTRAL
MILK HOTEL. A banda, nome maior do colectivo Elephant-6, foi uma das que acatou maiores responsabilidades pela consolidação
definitiva da esfera indie na década
de 90. Por trás do sucesso, uma enorme obra-prima: In The Aeroplane Over The Sea, de 1998. Jeff Mangum com a sua banda
em palco, e contrariamente ao que se tinha passado há dois anos, já não era
aquele filho da mãe deprimido agarrado à guitarra e a cantar sobre amores,
desamores, vida e a ausência dela. Tivemos a prova em 2014 que os Neutral Milk
Hotel foram uma banda um pouco à parte do mundo que os rodeou; a voz de Mangum,
imperfeitamente perfeita, e o seu estro lírico persuadem-nos de uma maneira
arrebatadora. Surpreendentemente, ou não, os Neutral Milk Hotel são mais
ruidosos do que aquele plano lo-fi
que se constrói numa densa simbiose em cada uma das suas canções. Rotulem a sua
música como vos apetecer, mas hão de deparar-se com os todos os vossos rostos
frente a frente no seu principal cerne. É claro que por lá corre muito mais folk de que outra coisa, mas a
ambiguidade intrínseca aos norte-americanos transporta-nos para um reportório
de mixórdias onde todos chocamos. É caso para dizer que também a sua música é “Two-Headed”.
O alinhamento do concerto prendeu-se, sobretudo, à sua maior obra, mas não
foram (nem podiam ser) esquecidos alguns dos êxitos de On Avery Island. Mangum ia dançando ao mesmo tempo que libertava o fuzz da sua guitarra para nos dizer «I love you, Jesus Christ!», os destroços
que esculpiu em In The Aeroplane Over The
Sea e o enigma que fez da sua pessoa pós-1998 já contam com perto de duas
décadas e afinal são os seus principais amigos que pisam consigo o palco NOS. Sozinho, faz estremecer o coração
do Parque da Cidade em “Oh Comely”; viram-se lágrimas e nelas se podia perfeitamente
ter espelhado o quão humana é a oitava faixa de ITAOTS. Por entre mais sucessos, “Ghost”, “Untitled”, “Song
Against Sex” ou “Two-Headed Boy Part 2”, o concerto desenlaçou-se ao som de “Engine”.
Mangum, sorridente, despediu-se do Parque da Cidade. Não sabemos o que será
feito dele futuramente (uma boa possibilidade é continuar-se a manter invisível
do mundo – bem constatável pelo facto de não ter deixado ninguém tirar um
registo fotográfico do momento -, deixando crescendo a sua barba, ganhando o
aspecto de vagabundo e continuando a deprimir até que volte a pisar um palco
novamente com os seus amigos), sabemos apenas que depois de um concerto destes
ele é tão humano quanto as suas canções e que afinal a sua tristeza é tão
efémera quanto a vida.
Em 2014, o NOS Primavera Sound fecha o ciclo de
Jeff Mangum com a glória dos Neutral Milk Hotel e não é descabido que, havendo
uma reunião dos Czars no futuro, JOHN
GRANT tenha nova passagem marcada pelo Parque da Cidade. Ao contrário do
primeiro, Grant gozou de uma passagem inequivocamente vitoriosa pelo Palco Super Bock, entre dois nomes de
peso do dia como eram os Neutral Milk Hotel e os The National. Num fenómeno com
o seu quê de surreal para a hora de jantar, a plateia presente parecia estar
perante um dos seus cabeças-de-cartaz da noite, ou pelo menos com capacidade
para tal, uma vez evidenciada agora uma faceta pop-rock electrónica e barroca ainda mais confessional mas ainda
solidamente baladeira, sombria e interpretada por uma voz ímpar. Embora sem
Sinéad O’ Connor, o alinhamento balançou muito mais para o lado de “Pale Green
Ghosts”, do ano passado, com as excelentes “I Wanna Go To Marz” e “Queen of
Denmark” no “olá” e no “adeus” a um dos marcos do NOS Primavera Sound de 2014.
Chegava a
vez de Portugal mostrar o amor, já conhecido por toda a parte, pelos THE NATIONAL. Apesar dos
norte-americanos terem passagem garantida por terras lusas quase todos os anos
(a ponto de já podem comprar um estaminé qualquer por aí), confesso que até
esta altura nunca os tinha visto. Iria vê-los, com muita pena minha, na sua
pior fase; o último disco dos The National não nos trouxe nada de novo e acabou
por soar a mais do mesmo. Ainda assim, trata-se de um disco razoável. Em palco,
os The National são conhecidos pelas suas incríveis performances. Não é de
estranhar que, por isso, as expectativas estivessem bem lá em cima. Depois de viagens
por toda a discografia, onde foram tocados sucessos como “Fake Empire”, “Sorrow”
(com participação especial de St. Vincent), “Abel”, “England” ou a estrondosa “Mr.
November”, e não só (também se levantaram ecos de Surfjan Stevens em “Ada), acabei
por ficar com a sensação de que o concerto soube a pouco. E não, o concerto
esteve longe de ser mau (foi, na sua verdade, excelente), mas por vezes
sentiu-se que as tropas de Ohio não conseguem ter o mesmo impacto quando viajam
aos seus tempos mais recentes (“Graceless”, “I Need My Girl” ou “Sea Of Love” –
pecou apenas por isso e pelas músicas que faltaram ser tocas (um festival pede
a “All The Wine”). Na maior enchente do festival que me recordo, talvez as
nossas expectativas estivessem demasiado altas.
Dum Dum
Girls ou Charles Bradley: qual a melhor alternativa aos The National? A julgar
pela coolness concentrada no palco
ATP, a nova tentativa bem sucedida de integrar um histórico num festival que,
embora sendo altamente cosmopolita, não deixa de ser predominantemente pop-rock. Totalmente maximalizada, a
banda de CHARLES BRADLEY, esse performer deepsoul de eleição ressuscitado no documentário “Soul of America”,
tem quase (ou mesmo) tudo o que um espectáculo exige: uma banda perfeitamente
integrada que faz também serviços mínimos nos coros, um apresentador melhor do
que muitos, o domínio de todos os caminhos do que se pode colocar em cima da soul e do blues e hinos celestiais como “Why Is It So Hard” e “You Put The
Flame On It”. Uma espécie de desforra dos tempos que agora já não contêm os
nomes que edificaram um género e uma canção e em que a sua irmã da Daptone,
Sharon Jones, é figura de proa. Bolas, ainda há quem faça bom trabalho de casa
nas editoras pelo Mundo fora…mas até que ponto tanta atenção repentina não se
esfumaçará? Essa é a pergunta que fica sem resposta enquanto Bobby Womack
também não for consumido, mais do que pelo tempo, pela demência de Alzheimer.
Antes da
hora de espreitar outros palcos, a tenda Pitchfork,
no seu dia mais interessante, era entre o final do concerto dos The National e
o início dos de St. Vincent e Slint dos norte-americanos de Massachusetts SPEEDY ORTIZ que, não pondo em causa
esforço que tenham empreendido, não saíram muito do registo agradável do garage-rock meio noise-pop colegial tipicamente mais datado do que alguns focos de
sucesso da mesma altura que se reuniram para voltar aos palcos nestes últimos
tempos. Nada que impeça, contudo, de apreciar o talento uma melodiosa e
irreverente Sadie Dupuis que, independentemente dos músicos que a acompanhem, tem
os tiques de personalidade necessários para que o seu nome seja mais do que um
minúsculo epitáfio de quarto de adolescente em que, por acaso, os pequenos
problemas dão origem a grandes canções.
Chegava a
tão ansiada hora: passavam trinta minutos da meia-noite e os SLINT subiam ao palco ATP. Estávamos nós na terceira fila do
concerto. Estávamos a uns escassos metros daquele bando dos quatro que um dia decidiu
começar a fazer música a sério quando ainda tinham catorze e quinze anos.
Sempre defenderam a escola que frequentavam era o principal propulsor para o
seu espírito criativo em tão tenra idade. Reza a lenda que nessa idade deram um
concerto, ainda sem a sua formação definitiva, para os seus companheiros da
escola. Reza a lenda que esse concerto durou uma hora, reza a lenda que já aí
despertavam e aliavam o amor pelas harmonias de uns Misfits a devaneios demorados
pelo silêncio. Não reza lenda nenhuma, está tudo num documentário: Breadcrumb Trail. “Breadcrumb Trail” é
também a primeira faixa de uma besta de perfeição: Spiderland, de 1991, foi o segundo disco do quarteto sob o nome
Slint.
O concerto começava e os prognósticos dão-se antes do jogo começar: iria
sair dali o concerto do festival. Não fomos defraudados. «São a melhor banda do mundo, caralho!», gritou alguém da plateia. O
grito estava certo, quase tão certeiro como quando “Breadcrumb Trail” se abre
para nós. As cabeças abanam-se, o legado celebra-se, as diferenças sobressaem; Tweez e Spiderland não parecem filhos dos mesmos progenitores. Se por um
lado existe a manutenção do espírito post-hardcore/math-rock
veiculado por um dos seus principais mentores, Steve Albini, por outro,
pelo lado de Spiderland, existe o equilibrar de forças entre o silêncio, o
dilúvio e a experiência. Se por um lado se abanam cabeças incessantemente, por
outro existe mais espaço para meditarmos e repensarmos na sua grandeza. São os
contadores de histórias; “Don, Amon” nasce da fusão de um baixo com uma
guitarra e de um spoken-word
constante. Termina numa distorção como por asfixia depois de levitar por entre
cada átomo de ar que compõe a atmosfera que se vive no Parque da Cidade.
Felizmente, o respeito pelo artista foi enorme e fez jus àquilo que se pedia: silêncio
e devoção. Foram-se embora dizendo “Goodmorning, Captain” e a praia ali tão
perto. No fim, nostalgia a correr-nos pelo corpo. Sabíamos que era um acto
irrepetível, mas nem nos nossos melhores sonhos equacionámos poder ver tanta
grandeza junta. Não foi um mero concerto de uma vida, foi muito mais do que
isso: foi o comprovar da existência de quatro seres que na casa dos vinte anos
esculpiram algumas das obras mais louváveis de todos os tempos e alteraram os
paradigmas musicais desde então. A evolução após a sua existência acalmou, o
conceito de novo também, quanto ao de único é deles e de pouco mais. Não
sabemos o que será feito deles futuramente, mas tal como se gritou em “Goodmorning,
Captain”, «I’ll miss you».
Depois de um
concerto assim (ler acima), quase tudo iria soar banal: foi o que nos aconteceu
com TY SEGALL. Monstro da garage rock actual, Ty Segall subiu ao
palco ATP em dia de aniversário. Bem,
vamos ser francos: apesar de ter alguns discos com um qualidade assinalável, Sleeper e mais um ou outro disco pecam
por nos dar sono. Em palco não chegámos a ter sono nem a abrir a boca a acusar
a presença dele, mas Ty Segall nunca nos conseguiu demonstrar aquilo que realmente
é (ou foi) para além de ser um mestre a tocar guitarra. Estava a ser mediano,
mas depois de Slint era como comprar um bolo-rei e calhar-nos a fava.
Bem
diferente da primal screamer Ida No
no ano passado, Cameron Mesirow, GLASSER,
ocupava o mesmo lugar na programação do palco Pitchfork com os mesmos
objectivos. Curiosamente ou não, foi também quando o ritmo do concerto abrandou
e se tornou um pouco mais exploratório, etéreo e negro que os verdadeiros
atributos do duo norte-americano de “Ring” e do mais recente “Interiors”
sobressaíram em alturas como “Landscape”, “Design” e “Mirrorage” num apelo
electrónico e metódico ao hedonismo à flor da pele correspondido pelo numeroso
público que se dividia entre algo mais funky
como os !!! e a alternativa inércia/curiosidade pelo registo frenético ligado a
outras voltagens do aniversariante Ty Segall. Para quem ficou, sobrou o brilho
da voz altamente dinâmica de Mesirow que lhe soube incutir um certo misticismo
e mistério não abafados pelo chamamento cafeinado de percussões convidativas. És
tu, “art pop” título de disco de Lady Gaga?
CLOUD NOTHINGS eram quem se seguia. A priori, tinha-os avançado com um dos
grandes concertos do festival. Colocar uma banda de post-hardcore (mesmo que por lá corra um fio pop bem vincado) a
tocar às três da manhã é, à falta de melhor termo, para partir com tudo.
Efectivamente partiram: houve mosh, crowdsurfing, empurrões e cerveja
espalhada pelo chão. Mais turbulentos e caóticos do que em estúdio, a harmonia
pop é sempre uma constante nas canções dos norte-americanos que facilmente
podiam ser confundidas com hinos à época juvenil. O alinhamento do concerto
andou sempre à volta de Attack on Memory
e de Here and Nowhere Else, disco
editado já este ano, e desenlaçou-se com a portentosa “Wasted Days”. É bom
quando a expectativa é cumprida.
A festa
portuense encerrou-se no festão incrível de PIONAL, que nos trouxe um set ecléctico mas sempre abraçado ao house.
O NOS Primavera Sound já tem data de
regresso marcado: época primaveril de 2015.
Texto por Emanuel Graça
/ Glasser, Charles Bradley, Speedy Ortiz, John Grant e Hebronix por André Gomes
de Abreu
Fotografias cedidas
pela organização (créditos: Hugo Lima) / Gonçalo Loureiro
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