sexta-feira, 23 de agosto de 2013

10 ANOS COM OS LINDA MARTINI: OLHOS DE MONGOL

Título: Olhos de Mongol
Edição: 2006, Naked Records
Classificação final: 10/10

Algures em 2006: os Linda Martini editavam, ainda com a sua formação primordial, uma das maiores obras-primas que há memória na história da música portuguesa. Olhos de Mongol, primeiro longa-duração do grupo lisboeta, via a luz do dia depois da edição do EP homónimo, no ano anterior, onde tinha nascido um dos hinos mais incontestados da banda, Amor Combate.

Contrariamente ao que se tinha passado com o EP que antecedeu a edição da estreia nos LP’s dos Linda Martini, Olhos de Mongol não foi um registo editado com direitos de autor; dado o fenómeno Myspace, que teve clímax por estas alturas, a Naked, uma editora na altura recém-criada, descobriu o, então, quinteto lisboeta no sítio e na hora certa. Resultado? Julgo que não podia ter sido melhor. A produção do disco está assombrosa, medonha, sinistra, a combinar perfeitamente com a avalanche sónica que descarrila durante todo o registo. A verdade é toda ela essa: a música dos Linda Martini está diferente, sobretudo se se comparar com o único registo até então, mas mantém-se igual a si mesma: mantém-se inóspita, dolorosa, sangrenta, sempre com toques de post-rock à deriva, mas que desta vez não se convivem sós. Há vestígios de post-hardcore à la At The Drive In, há experiências e aventuras pelo math-rock, pelo punk, há guitarras assanhadas, baterias demoníacas e um brilhantismo lírico simplesmente desolador.

Sim, é mesmo verdade: as letras das canções dos Linda Martini são mesmo, em grande parte, geniais e não é pelo facto de noventa por cento dos nossos amigos nas redes sociais as colocarem como estados, etc. que estas perdem a sua genialidade. As voltas que elas dão são quase sempre as mesmas: corações cilindrados, quebrados, acelerados, destroçados, repletos de ódio, paixão, dor. Será cliché dizer-se que se tudo fosse unificado tecia-se um combate ao amor, mas são os próprios o afirmam: O amor é não haver polícia. O amor é a entropia das coisas, é um paroxismo da desordenação emocional, racional, sempre a duas partes. É transcendente, vale apenas deixá-lo viver incondicionalmente. «Se o nosso amor é um combate // então que ganhe a melhor parte». Em casos particulares não sabemos quem ganha, mas em Olhos de Mongol a vitória é unicamente dos Linda Martini.

E se as letras são pesadas, melancólicas e tristes, o mesmo é aplicável à tonalidade instrumental que as banha: guitarras apetrechadas de reverb a conferirem uma sonoridade inóspita, uma bateria simplesmente arrasadora (sim, é verdade: O Hélio dá-lhe como o caralho!) e um baixo que embora nunca brilhe bastante, a estética sonora da banda assim não o permite, acaba sempre por cumprir bem a sua função. As vocais, sempre a cabo de André Henriques, também não sendo algo de extraordinárias, cumprem a sua peculiaridade – a de estarem lá unicamente por estar, não é algo que a banda dê ênfase, não é algo que nos faça estar com muita atenção a ver se se canta bem ou não: a pólvora está toda na instrumental e na letra. Quase só importa perceber o que se canta, nada mais.

E é exactamente isso: a pólvora está quase toda ela concentrada na vertente instrumental do disco. Das cinzas de ‘Cross The Breeze, dos Sonic Youth, que se exsurgem como uma das influências mais vitais no processo criativo dos Linda Martini, se incendeia Dá-me a tua melhor faca, uma das melhores canções, senão a melhor, do quarteto até à data. Uma dor demasiado grande para se viver sozinha, a procura de outrem com quem a partilhar, a esperança em que isso aconteça, a sentença de vivê-la sozinha. Tudo em apenas dois versos, «Dá-me a tua melhor faca p’ra cortarmos isto em dois // e amanhã esquecer», e numa descarga sónica abismal. Partir para ficar, excerto da histórica FMI, canção original de José Mário Branco, assegura uma vez mais, depois de Adeus Tristeza, o talento bruto que o grupo tem para tocar canções que não suas. Estuque vale pela sua esquizofrenia, pelo seu misto de emoções, pela «voz que é surda atrás da mão», pela sobreposição do agir à razão. Depois surge o momento, se é que assim se pode chamar, do álbum:

«O mundo é grande e em todo o lado se vive // Diz-lhe para parar aqui // Vivemos em caixas de fósforos // Não sopres // Se as mãos pudessem dizer por mim, se as mãos… // Eu queria tanto parar aqui», escreve-se em o Amor é não haver polícia, a faixa que mais vinca a faceta hardcore dos lisboetas: guitarras incessantemente turvas, gritaria descomunal e desejo obsessivo em «parar aqui». Mas não, não paramos ali; há mais por onde andar e temos tudo menos vontade de parar o soco no estômago que é Olhos de Mongol. Descansa-se, literalmente, em Quarto 210, um interlúdio que desacelera o ritmo frenético que se vive até então, e volta-se à carga na icónica Amor Combate, faixa que dispensa qualquer tipo de apresentações (porém, convém relembrar que esta faixa está alterada em relação ao registo que a fez nascer, está mais limpa, menos suja). A Severa (ver de perto) é a faixa que serve de desenlace ao LP de estreia dos Linda Martini e acaba por funcionar como compêndio do registo: mais esquizofrenia, mais uma mistura tão díspar de emoções, sentimentos. Mais um par de intrigas, de corações desnorteados à procura de chegarem a porto são. «Ver de perto com a dor de quem está longe», esforço em vão: no fim é só mais uma dor inquietante.

E de isso é feito Olhos de Mongol; é feito de insalubridade, desespero, agonia. É uma obra que dói, que choca, que não consegue deixar ninguém incólume porque, na verdade, o seu objectivo era mesmo esse: inquietar as pessoas. Missão cumprida, não há como sair daqui indiferente. Não depois de um som tão violento que viaja pelo post-rock, punk, hardcore e com curtas passagens pela math-rock. Não depois de ouvir coisas tão incrivelmente arrasadoras como Dá-me a tua melhor faca ou O Amor é não haver polícia. Não depois de nos apercebermos que o amor é isso mesmo: um combate à espera que se definam os seus dois vencedores ou os seus dois perdedores. Porém, em Olhos de Mongol a vitória é apenas singular: dos Linda Martini.

Emanuel Graça




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