À sombra de Deus é uma colectânea musical que pretende preservar o
legado cultural da juventude do império bracarense. Encabeçada pela figura
incontornável de Aníbal Luxúria Canibal, vocalista dos consagrados Mão Morta, e
por Miguel Pedro, é agora que nos chega a sua quarta edição.
Dividida em duas partes, esta
selecção musical é cimentada pela sua riqueza e diversidade. De facto, quando o
ouvinte escuta esta À sombra de Deus 4 –
Braga 2012 compele-se a deambular por rumos completamente diferentes a cada
música. Desde os momentos mais calmos, polidos pelas tonalidades mais suaves e
aromatizado pelos odores mais harmoniosos, até aos momentos mais intrigantes,
onde tudo parece estar incôndito e em desordem, somos constantemente penetrados
pela ousadia desta compilação.
Devido às diferentes bandas que
compõem esta selecção, não é possível categorizar o estilo musical com que esta
foi arquitectada. Desde o estilo rock
«à maneira antiga» patenteado na enérgica Soul
do rock, dos Balão de Ferro, à brincadeira com o R&B feita por parte
dos Dead Men Talking na agradável e esplendorosa Absolution of time, torna-se impossível categorizar o registo num
único estilo musical, dando somente a certeza de que a tarefa de agradar a um
maior número de pessoas fica, seguramente, mais facilitada, o que, em meu ver,
é um dos pontos dignos de realce do registo.
Focando-me nos pontos que mais me
surpreenderam nesta obra, devo debruçar-me sobre cinco nomes: Dead Men Talking,
The 1969 Revolutionary Orgy, Cavalheiro, At Freddy’s House e Tatsmuaki.
Os Dead Men Talking, formados em
2005, são compostos por um quarteto e apresentam-nos, nesta obra, a sua
magnífica Absolution of time.
Brincando com os princípios básicos do R&B
e radicando-se num vincado smooth electro,
vão articulando uma voz, a cabo de Carlos Silva, sempre muito peculiar com uma
instrumentalidade desiniba e ousada, embriagada pela sapiência com que Márcio
Alfama, teclista, solta os seus dedos para mandingar o ouvinte. É de se referir
que quando escutei a sonoridade produzida por estes bracarenses chegou-me à
memória toda a genialidade de The Weeknd, por exemplo. De facto, fica aqui
complanado que este quarteto bracarense tem muito para nos poder oferecer,
muito para além do seu primeiro EP intitulado Underworld.
The 1969 Revolutionary Orgy
espelham ousadia, não só pelo seu nome como também pela sua música. Querendo
reinventar os 70’s, apresentam-se
como um grupo de rock and roll puro,
com ideais que se deambulam pelo aternative característico já dos 00’s.
Apelativos, conseguem criar uma fusão bastante agradável entre a vertente
instrumental, vocal e lírica, sempre sem grandes falhas e numa sincronia que
consegue prender o ouvinte a cada instante, como ficou patente em Time for living. O quinteto, formado em
2008, conta, até ao momento, com o lançamento de um único EP intitulado Artwork Bootleg Live EP, e prova, nesta
coletânea, que pode subir a fasquia e experimentar-se na rodagem dos LP’s. Nós
agradecíamos.
Cavalheiro foi uma admirável
surpresa, até porque cantam no dialeto Camoniano. Debruçando-se sobre lirismos
estupendos, revestem a ouro uma sonoridade calma, domada por uma guitarra
interventiva e por uma bateria que acaba por acatar um papel atmosférico muito
importante. Com pequenos toques instrumentais acabam por lembrar o pesar do prog rock e criar uma simbiose bastante
graciosa entre uma voz que combure e aconchega incessantemente o ouvinte. Em
compêndio, exsurgem-se com uma das grandes surpresas da obra. Bom Jesus é, indubitavelmente, um dos
pontos altos do registo e anseio por poder ouvir mais deste quarteto formado em
2009 e que conta já com o lançamento de três EP’s.
At Freddy’s House aprece-nos com
a profunda Written in blood. Numa
paisagem calma e triste, onde tudo parece ser incompto e se esquivar da
alegria, chega-nos uma voz com um timbre muito peculiar. Somos concitados por
pequenos traços dos 90’s, mas são uns traços que já perderam alguma fervura e
que agora vão arrefecendo a um ritmo lento. A vertente vocal, roca, cria uma
simbiose bastante interessante com uma guitarra mais calma que o habitual, num
ritmo abrandado, a passa de caracol, o que cria, ao longo de todo o arrojo,
momentos de pequeno suspense. Written in
blood fez-me lembrar, entre outros, nomes como os britânicos Bush, o que me
agrada bastante. Fred está para as curvas e espera-se pelo lançamento de um
segundo álbum, tendo sido o primeiro, Look
Full Version, lançado em 2010.
Outro dos nomes que mais captou a
minha atenção foi Tatsumaki. Tatsmaki é nome que se esconde por detrás de Marco
Pereira, um homem que se desdobra incansavelmente entre os teclados,
sintetizadores, caixa de ritmos e a voz. Apoiando-se no seu estro rítmico, Dream Drive é daquelas canções que fazem
água na boca ao ouvinte, tal é a vontade com que ficamos de ouvir mais acerca
do multifacetado Tatsumaki. Apetrechando a sua sonoridade pela componente
eletrónica, dá a sensação de que se escondem inúmeras pessoas por detrás da
música que nos chega aos ouvidos, tal é a sapiência e destreza de Marco para
manusear cada instrumento. Fica a sensação que, apesar de se tratar de um
estilo musical que é bastante alternative,
este é um dos nomes que pode muito bem invadir as massas. Esperemos que sim,
porque o talento, esse, é imenso e merece reconhecimento.
Além dos nomes que mais me
surpreenderam, existem também aqueles que, apesar de não serem nenhuma
surpresa, acabam por conferir a este À
sombra de Deus outro patamar e outra visibilidade. Falamos, claro, dos Mão
Morta, Peixe-Avião, Mundo Cão, Long Way To Alaska ou, até mesmo, Balão de
Ferro.
Mão Morta apresentam-nos A ver o mar e dispensam comentários.
Sempre enormes, ao leme da genialidade da figura quase épica de Aníbal Luxúria
Canibal, o «mentor» de todo este projecto, cessam toda a sua fome junto da sua
música. Peixe-Avião estão cada vez mais a cimentar a sua figura na poltrona da
música alternativa portuguesa. Cantam-nos Voltas
Cegas, rematando um momento que incrassa a qualidade de todo este registo.
Mundo Cão ladram-nos as suas crenças com Meu
Deus! e provam-nos que não querem desdourar tão cedo, nem que se deixam
combalir pelos seus já 10 anos de carreira. Long Way to Alaska, banda que se
está a cimentar no panorama alternativo nacional, cantam-nos, no dialeto de
Shakespeare, Yonder Year, uma música
com uma sonoridade indie pop, que agradará, seguramente, a todos os ouvintes. Balão
de Ferro, o nome menos consagrado dos que acima referi, fazem-nos voar sob uma
atmosfera domada pelo espírito rock,
onde todas as camadas gasosas parecem querer soltar ao seu som. Eles são do
rock, não do pop, fazem a estrada levantar pó e não têm dó. Julgo estar tudo
disto acerca do trio formado em 2010.
Além de todos os nomes acima
referidos, o registo ainda conta com mais nomes. Anguria é uma surpresa agradável
que nos aparece com Necrologia que,
contando com uma voz feminina bastante sensual, promete não querer largar os
tímpanos do ouvinte durante o misterioso verso «Contar-te com rigor». De
referir o solo final, que é bastante bom.
A música «boa onda» dos Monstro
Mau ou dos Smix Smox Smux também não deve deixar de ser referida, e prometem
transmitir boas vibrações a todos os ouvintes. Atenção, também, para os Egg Box
que produzem uma mistura musical bastante interessante, fazendo-me lembrar
bandas como, por exemplo, Radiohead ou The Rapture.
Contudo, À sombra de Deus deambula-se por rumos mais incertos, misteriosos e
latebrosos quando nos aparecem nomes como Spitting Red, Vai-te Foder, Nyx,
Estilhaços, Ermo, Astroboy, Palmer Eldritch ou Hunted Scriptum. Hunted Scriptum
parecem querer concutir o nosso cérebro com uma música metal poderosíssima alicerçada em berros desalmados que nos
pretendem combalir a cada vocativo que é expelido pelo vocalista, Sérgio
Ferreira. Spitting Red berram-nos Inception
Delay num arrojo instrumental absolutamente divinal. Num cenário cenoso
querem penetrar a nossa mente, não pretendendo deixar ninguém incólume. Nyx e
Ermo primam pela misteriosidade com que conseguem musicar as suas ideias, o que
resulta numa espécie de catalisador para que o ouvinte ouça, sinta e imagine a
música. Palmer Eldritch e Astroboy musicam pequenas obras de arte que se
radicam em futurismos sónicos penetrantes e viscerais, capazes de levitar
durante horas na nossa cabeça.
Estilhaços musicam, em À sombra de Deus, Nevoeiro. Tal
e qual o seu significado, só sabemos, quando está nevoeiro, o que está à nossa
frente quando damos um passo em frente. O cenário, aqui, é o mesmo. Envolta de
misteriosidade, onde tudo tarda em se clarificar, num poema declamado por uma
voz que nos soa lapuz e que nos eleva para rumos inóspitos, Nevoeiro é um belo exercício de
imaginação feito pelos Estilhaços. O outro nome deste leque que falta referir
são os «pesados» Vai-te Foder, que edificam, em Nascido Para Odiar, uma autêntica ode ao mosh, tal é a explosão e overdose de emoções que eles catalisam.
Outro dos pontos de realce deste registo é que este conta com a participação do
conceituado poeta bracarense Valter Hugo Mãe e do seu Governo. Cantam Saudades de Sebastião, numa excelsa
composição lírica, não fosse Hugo Mãe o seu escritor.
Em compêndio, À sombra de Deus preserva (e de que
maneira!) todo o talento bruto que existe pela cidade Bracarense. Adolfo
Luxúria Canibal e Miguel Pedro estarão, por certo, bastante orgulhosos desta
playlist que elaboraram pela quarta vez e que cimenta o império bracarense como
uma fonte de boa música, diversidade e, acima de tudo, de riqueza cultural. Com
tanta diversidade, são-nos baralhados todos os sentidos, o que é estupendo. No
seio de uma overdose de sentimentos, fruto de escutar este registo por duas
ocasiões consecutivas, recomendo que vos deixem mandingar pelos feitiços deste
Deus.
Emanuel Graça
Emanuel Graça
0 comentários:
Enviar um comentário